AGORA TAMBEM TEXTOS SEM ACENTUACAO E SEM PONTUACAO

SOU O QUE SEREI

terça-feira, 30 de julho de 2024

pequeno fragmento perdido de diário

 pequeno fragmento perdido de diário:



tantos porcento tem alguma doença mental, tenho orgulho de ter todas


psiquiatra aconselhou escrever diário, recusei


tenho mais 2 personalidades, mas só eu sei delas, elas não sabem de mim


vejo um sujeito de terno na rua, sinto pena dele, tenho pena de todos que precisam usar roupas


o que é isso? não escrevi nada disso. mas então… uma das minhas personalidades… ou as duas… oh não…


terça-feira, 30 de abril de 2024

A Saga do Herói Forasteiro

 

A Saga do Herói Forasteiro 



O Herói Forasteiro chega de passagem no pacato vilarejo que passou a ser aterrorizado pela gangue do Terrível Vilão. Seus pacíficos habitantes logo percebem que o Herói Forasteiro é um habilidoso e experiente guerreiro, pode ser a salvação para eles. Imploram para que os ensine a combater, que os ajude contra os inimigos.


Por que eu o faria? Vocês não tem nada que eu queira. - Foi a áspera resposta do rude Herói.


Mas o Herói se apaixona pela filha do líder do vilarejo, assim decide ajudar. Vai treiná-los para lutarem.


Você é um enviado de Deus para nos salvar.


É montada uma estrutura de treinamento e os vilarejistas são armados. O Herói os ensina a usar o revólver:


Segure a arma nessa posição, concentre, mire e atire.


O jovem atira e acerta o alvo, a uma boa distância.


Muito bem, você tem muito talento.


O jovem fica eufórico, se vira meio desajeitado para o Herói, para agradecer.


Ei, cuidado, não aponte a arma pra mim…


A arma dispara e explode a cabeça do Herói.


O que… o que você fez?


Eu… eu não quis… disparou sem querer… não…


Nosso salvador! Está morto!


E agora? Que faremos?


Assim terminou a saga do Herói Forasteiro.


FIM


segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

COPROAPOCALIPSE


(publicado há alguns anos no site Maldohorror)


COPROAPOCALIPSE



Olhe para os lados. Depois para trás. Para baixo. Para cima. E finalmente para a frente. O que você vê? 

Isso mesmo. 

Merda!

Apenas isso. Merda pra todo lado! Acham que exagero quando digo que o mundo não passa de uma grande bola de bosta. Mas é fato! Sempre foi e continua sendo um grande amontoado de esterco!

528. 529. 530. 531. 532. 533. 534. 535.

Essa é uma técnica de concentração e relaxamento que passei a adotar. Pauso a mente e começo a contar por alguns segundos. A meta é contar até um milhão, aos poucos. A regra é a cada vez continuar a contagem de onde parou anteriormente.  Assim, o desafio é não esquecer a sequência e não deixar de executar esse relaxamento, de preferência várias vezes ao dia.

537. 538. 539. 540. 541. 542. 543.

São sete horas da manhã. Estou bêbado. E chegando no escritório. Entro, dou bom dia e vou direto pro banheiro cagar. Sempre cague no escritório, é o que eu digo, cagar em casa é desperdiçar seu tempo livre. É pra isso que foram criados os escritórios. Para termos um local pra cagar.

Roboto das sete às dezesseis. É um bom horário. Chego sempre bêbado.

Ah, desculpe, utilizei um termo diferente sem explicar. Roboto vem de robotar. Tirei essa da tradução brasileira do clássico Laranja Mecânica, do Burgess. Robotar foi a tradução adotada para o original “to rabbit”, que seria um trocadilho com o verbo russo rabotat, que significa trabalhar, mas tem como raiz a palavra rab, escravo. E essa palavra teria originado o termo robot –um trabalhador mecânico escravo. Achei perfeito esse termo, robotar. Passei a adotar no lugar de trabalhar, quando me refiro a esse inútil trabalho de escritório, que nada mais é do que a escravidão moderna e refinada. Trabalhar só uso para aquilo que faz sentido para mim. Por exemplo, ao escrever este relato estou trabalhando. Quando bato uma punheta, estou trabalhando. Mas passar o dia no escritório não é trabalhar, é robotar.

Então, como dizia, chego sempre bêbado ao robotamento. É importante sempre robotar bêbado. Veja bem, eu disse robotar bêbado, não de ressaca. Robotar de ressaca é para amadores. Profissionais robotam bêbados. Como pego serviço às sete, bebo durante toda a madrugada e vou direto bater o ponto.  

Engraçado que, a partir das oito, tenho que atender o púbico, digo, público. Então, quando abro a boca, pois não senhora, a pessoa já faz cara feia, certamente sentindo o hálito de álcool. Melhor ainda se tiver vomitado antes, aí o odor fica no jeito.  

É uma batalha épica conseguir me manter desperto até dezesseis horas, quando vou pra casa dormir, já quase desmaiando. Acordo umas 23 e saio pra iniciar um novo ciclo de bebedeira. É pra isso que existem empregos. Pra comprar cerva. O tempo no escritório é absolutamente perdido. Assim é importante, não, é essencial, não, é obrigatório, robotar sempre bêbado.

Sempre olho minhas fezes. Importante analisar suas fezes. Caramba, hoje foi bastante merda. Cobriu toda a circunferência de água no vaso. Mas estão todas ótimas. Até demais. Muito coradas. Firmes. Consistentes. Inteiras. Bateram na água e não despedaçaram. Tamanho e volume adequados. Uma boa merda é aquela de coloração viva, quente, sem deformidades ou escoriações que comprometam a estabilidade de sua estrutura, e de formato mais ou menos de uma banana caturra. Sim, aquelas merdinhas pequenas e mirradas não são saudáveis. Uma boa merda é imponente, se destaca na privada. 

Cago no mínimo três vezes por dia. Desde a adolescência. Na época, achava que eu tinha alguma doença, que não deveria ser normal cagar tanto. Mas o médico disse que é normal sim, até benéfico, sinal que o sistema digestivo funciona bem e com rapidez. 

Assim, cago todos os dias no escritório quando chego, depois do almoço e antes de sair, no mínimo. Alguns dias dou quatro cagadas no escritório, quando considero que o dia de labuta foi altamente produtivo. Meu recorde foi cagar seis vezes num período de 24 horas. Produção fordista de bosta. Performance acima da meta. E sem diarreia, sem qualquer mal-estar.

De fato, é basicamente isso o que nós todos fazemos o dia inteiro: merda. A maioria das pessoas caga pelo menos uma vez por dia. Entre num banheiro público movimentado, tipo de uma rodoviária, sempre tem alguém cagando. É a grande especialidade do ser humano. Fazer merda. E não apenas literalmente. Fora do banheiro continuam cagando. Quando abrem a boca então, é diarreia pura. Falar nada mais é que defecar ondas sonoras. Esses dias vi um filme muito interessante, em que o mundo foi devastado por criaturas que atacam ao perceberem qualquer ruído. Assim, para sobreviver, a humanidade restante passa a ter que existir em absoluto silêncio. Imagine um mundo em que quem emitisse qualquer som fosse aniquilado. Que paraíso seria!

Depois do trabalho fecal da manhã, o desafio de aturar a rotina do escritório. Horas e horas de unidades-carbono falando merda sem parar, fingindo que as atividades merdas que executamos fazem alguma diferença pra alguém além dos patrões, e ainda tentando te convencer que são pessoas legais e felizes.

544. 545. 546. 547. 548. 549. 550. 551.

Perdão, usei mais um termo unusual, unidades-carbono. Tirei essa do primeiro filme Star Trek. Era como a entidade alienígena investigada pelos protagonistas se referia aos seres humanos. “A infestação de unidades-carbono deve ser eliminada”. Termo ótimo.

Como disse, sempre olhos minhas fezes. É a forma como acompanho minha saúde. Com o tempo, descobri que existem alguns tipos de bosta, da mesma forma como existem diversos tipos de unidades-carbono. Existe até uma escala oficial, a Escala Bristol de Forma Fecal. Assim, quando interajo pela primeira vez com alguém, o primeiro pensamento que me vêm é: que tipo de bosta esse elemento é? Quando estou em um novo ambiente ou no meio de um grupo avalio cada um me perguntando que tipo de bostas são.

Por exemplo, o Samanto, aqui do escritório, é bosta tipo 1. Aquela formada de várias bolotas duras, difíceis de eliminar, desagradáveis. Tipo aquela badalhoca que se enrosca nos pentelhos do cu e custa a se desprender. Ou seja, é o chato, o ridículo, o insuportável, aquele que temos de fazer muita força para aturar e muito trabalho pra se livrar. Só incomoda todo mundo o tempo todo. O que se acha o legal, o divertido, o engraçado, o sucesso, mas é apenas… bosta.

A Merilu, sempre sorridente, sempre fingindo ser amiga de todo mundo. Mas tá sempre bajulando chefe e muda de comportamento conforme for conveniente, é sua amiga apenas se não for mais vantajoso te sacanear. Bosta tipo 6. É aquela bosta pastosa, disforme, de formas indefinidas e que gruda na lateral do vaso. Tipo cocô-trapezista, aquele pedaço da segunda rodada que não cai depois que você já fez a bosta principal, fica pendurado na bunda e não cai de jeito nenhum. E você balança a bunda, dá pequenos saltos na privada e não cai. Aí quando você cansa e vai limpar com o papel, espalha a bosta toda e é aquela sujeirada. 

Já o estagiário novo que chegou semana passada. Quando o conheci, olhei pra ele, conversamos por cinco minutos e não tive dúvida. Bosta tipo 7. A pior de todas. É a bosta da diarreia, líquida, malcheirosa, que se espalha pela privada inteira, que vai e volta, não te liberta. Esse cara é uma dor de barriga misturada com chute no saco. Entrou na empresa porque o papai é amigo do chefe e cansou de vê-lo passar os dias em casa sem fazer nada. Sempre teve tudo que quis numa vida de futilidades, carros, roupas, celulares, faculdade privada de administração. Sem nunca ter se esforçado pra nada. Nunca leu um livro na vida. Esse é bosta do tipo que você não tem dúvida que só serve pra causar mal-estar. Ao interagir com ele, só dá vontade de puxar a descarga logo e cimentar a privada para não voltar.

Pra aturar o dia no escritório me acostumei a passar o tempo vendo notícias fuleiras na internet. Os outros também passam o tempo na internet, mas só nas redes sociais, não acessam nenhum outro site. Eu particularmente abomino redes sociais, não tenho nenhum perfil, nunca tive e nunca terei, seria um contrassenso alguém que despreza inteiramente a sociedade ficar postando idiotices para ganhar popularidade virtual. “Você não tem facebook? Que espécie de sociopata maluco é você?” É o que as UC (unidades-carbono) me respondem com o olhar quando digo que não uso essas merdas.

Incêndio num prédio, casal morre ao pular pela janela. Que romântico.

Na Indonésia, macacos são treinados pra pedir dinheiro nos sinais. A evolução das espécies.

Ex-dirigente da antiga Iugoslávia condenado à prisão perpétua por crimes cometidos nos anos 1990. O cara já tem 80 anos, que diferença faz ser considerado culpado? Sujeito comete um genocídio em 1990 e é condenado 30 anos depois. A justiça dos homens…

Um caseiro foi encontrado morto num chiqueiro, após supostamente fazer sexo com uma leitoa que estava amarrada ali. Ao lado do corpo foi encontrado um pacote de camisinha com uma unidade a menos e uma garrafa de pinga. Os investigadores suspeitam que teve um ataque cardíaco durante o ato e morreu. Na sequência, teve partes de seu corpo devoradas pelos porcos. Quando o dono da propriedade o encontrou, ele estava sem o órgão genital, parte da coxa, braço e parte do rosto.

Pois é. Porcos são legais.

Às vezes preciso interromper meu passatempo para atender público ou alguma demanda dos chefes. Saco. “Queria renegociar essa dívida”, “Preciso de um novo empréstimo, mas num prazo maior”, “Vocês descontaram uma dívida que eu já quitei”. Haja saco para aturar as UC.

552. 553. 554. 555. 556. 557. 558. 559. 560. 561. 

Finalmente hora do almoço. Saio pra rua. Olho para o céu. Está nublado. Pra mim está sempre nublado. Mesmo nos dias de sol. Mesmo quando os raios ultravioletas estão mais violentos que nunca e nenhuma nuvem orbita o céu. Mesmo com sol a pino e exuberantes flores primaveris, mesmo com o calor despudorado e os sorrisos juvenis, pra mim o dia é sempre cinzento, está sempre nublado. Às vezes, quando entro em algum lugar, alguém me pergunta se está sol ou chovendo. Está nublado, é minha resposta. Às vezes, minha mãe, quando me liga do interior, pergunta como está o tempo por aqui. Está nublado, é o que sempre respondo.

O que dá pra fazer nessa hora obrigatória de almoço? Nada. Se temos algum compromisso, uma hora não dá pra resolver. Se não temos, almoçamos e voltamos pra prisão, nada a se fazer. Na rua, uma horrenda multidão sai pra almoçar ao mesmo tempo do interior de infinitos prédios comerciais e infestam todo o hipercentro da hipercidade. Impossível andar e não trombar com as UC. E pergunto: o que toda essa multidão faz o dia inteiro? Quantos deles realizam alguma atividade que agrega algum valor para o mundo? Ou para a própria humanidade? Cambada de inúteis em inúteis empregos de merda. É por isso que não são trabalhadores, são robotadores. E, como se não bastasse, ainda temos de desviar dos trocentos milhões de pombos catando lixo por todo lado e das intermináveis filas de carros que parecem uma colônia de vermes ziguezagueando ao redor das carniças.

Acho que odeio tudo que se move. Todos os seres vivos deviam ser como as plantas, sem a ambição de desgraçar tudo ao redor.

Os carros são definitivamente uma extensão metálica das UC. Tão insuportáveis e inúteis quanto. Por onde se anda, sempre tem um carro no caminho. Atravessados na calçada tentando entrar ou sair de alguma garagem, ou simplesmente estacionados pelas calçadas. Pedestres que se virem pra conseguir passar. 

Os restaurantes do centro são tão horrorosos que o almoço deveria ser gratuito. Mas pelo contrário, o preço é algo que deveria ser tipificado como crime, muito além do que é coberto pela miséria do vale-refeição. Ora, pra que colocar um preço justo ou se preocupar com qualidade? Sempre haverá, todos os dias, um batalhão de robotadores precisando se alimentar para permanecerem vivos e continuarem robotando e ganhando o dinheiro necessário para pagar a comida necessária para permanecerem vivos e continuarem robotando.

Um sujeito maltrapilho, barbado, desgrenhado, grita numa calçada pra quem quiser ouvir. “O presidente morreu. Morreu que eu vi. É tudo enganação. Tudo enganação”. Os grupos passantes ao redor desviam, passam longe. Evitam fazer contato visual, fingem que não escutam. O sujeito não se importa e continua discursando em alto tom. “Isso tudo vai acabar. É aqui mesmo que se pagará”. Os malucões de rua são ótimos. Únicas UC que respeito.

Uma pequena barraca na esquina vende cachorros quentes, hamburgueres e batata frita. Vários banquinhos para pessoas sentarem. Um dos clientes em um dos banquinhos, um senhor com cara de vovô, alimenta um pombo. Meu sangue esquenta, e ainda estou meio tonto de bêbado, mas mesmo assim consigo calcular friamente meu próximo movimento. Logo atrás uma rua interditada por uma obra paralisada. Numa rápida arrancada, acerto em cheio o pombo num chute potente e certeiro. A criatura voa até planar lindamente sobre um amontoado de entulho. O vovô me fita boquiaberto, atônito. Bosta tipo 2. Todo rachado, grumoso, esburacado. Cara toda encaroçada, como se fossem pequenas bolinhas de cocô grudadas na pele pálida. Bosta da constipação, aquela que permaneceu muito tempo no cólon, que não vai embora, que só dá trabalho. Pra aturar só com muito esforço.

Quando as unidades-carbono vão aprender? Pombo não se alimenta. Pombo se chuta. Deviam coletar pombos e doar para equipes de futebol americano treinarem o kick.

Almoço rápido, pois hoje tenho um compromisso que deve consumir minha hora de sol, vou na loteria fazer minha fezinha semanal. Fezinha de fé, não de fezes, favor não confundir. Sempre jogos os mesmos números: 1, 2, 3, 4, 5, 29. Por que não apostar de 1 a 6, você talvez questione. Ora, devem ter vários outros que apostam 1 a 6, então troco o 6 pelo 29 pra ganhar sozinho. Um cara no escritório, o Marcélio, que também está sempre apostando quase surtou quando contei dos meus números. “Que viagem é essa, você nunca vai ganhar com essa aposta doida”. “Ué, por que não? A probabilidade é a mesma de qualquer outra combinação. Mesma chance, supondo que a loteria seja honesta”. Mas ele não aceita, argumenta que uma combinação aloprada dessa nunca vai ser sorteada. Outro dia, até me mostrou um estudo que fez com todos os sorteios realizados nos últimos 20 e tantos anos. Colocou as mais de 2 mil combinações de números sorteados e montou toda uma análise estatística em planilha. “Olha aqui, esses são os números que mais foram sorteados. Nunca teve uma combinação maluca igual essa sua. Esses são os números que temos que jogar”. “Sei”. Marcélio é uma variante da bosta tipo 1. É tipo aquelas bolinhas de merda que custam a sair, mas quando caem da bunda somem dentro do vaso. São tragadas direto, sem descarga. Você olha e pensa “ué, cadê? Foi cocô fantasma?” Chato, incômodo, mas insignificante.

Volto do almoço meio dia e meia, exatamente uma hora após ter saído. Direto pra privada. Ah, como é bom cagar. É sempre bom.  Sensação de liberdade, de alívio, de estar se livrando de um peso inútil. Queria defecar toda a humanidade e dar descarga dessa porcaria toda pro mais longínquo e inacessível buraco negro do universo.

Cago por um bom tempo. Muita bosta, mas fluindo naturalmente, descendo suave. Quando finalmente termino e olho, novamente assusto com a quantidade. Cobriu novamente toda a água do vaso, uma ilha de merda. Não sei se impressão, mas acho que, nos últimos dias, a cada vez, cada nova cagada, tá vindo com mais bosta. Será que é isso que estou me tornando? Cada vez mais um grande monte de bosta? Esse é meu corpo, nada mais funciona, não presta pra mais nada, apenas um grande produtor de bosta. O que você faz? Bosta. O que você é? Bosta.

A seguir, de volta à rotina. Notícias da internet, saco quase estourando de tão cheio de aturar babaquices de colegas de robotamento e público externo.

561. 562. 563. 564. 565. 566. 567. 568. 569. 570. 571. 572. 573. 574. 575. 576. 577.

Os vermes pogonóforos são curiosos animais que habitam os fundos oceânicos nas regiões vulcânicas das cordilheiras mesoceânicas que parecem ter desistido de comer, afinal, eles não têm boca, nem estômago, nem intestinos, nem ânus. Seu sustento vem de relações mutualísticas com bactérias quimiossintetizantes. Esses sabem viver.

Crítica sobre o livro “o que as mulheres mais gostosas do Brasil pensam sobre privacidade”. O resenhista reclama que o livro não traz nenhuma foto das gostosas. De fato, falha grosseira de edição.

Jovem processa os próprios pais por ter nascido. Justo.

Um velho teve uma parada cardíaca fulminante durante o sexo e morreu. Mas o pau imediatamente inchou e ficou preso no cu da garota. Teve que ser levada ainda grudada nele pro hospital para intervenção cirúrgica pra libertá-la. Tem gente que fode com os outros até depois do fim.

Uma geneticista afirmou que envelhecer é perder o interesse pela vida, uma pessoa só fica velha quando perde a alegria de viver. Acho então que eu já nasci velho.

Hmm… minhas unhas das mãos já estão bem grandes. Crescem rápido. Tenho um cortador em meu gaveteiro. Só corto no roboto. Não apenas as unhas da mão, do pé também. Outro dia a Roxânia, passando pela minha baia, me viu cortando as unhas do pé, ficou horrorizada. "Não acredito que você está fazendo isso". O que ela queria? Que eu fizesse em casa? Desperdiçasse meu tempo livre?

De vez em quando minha mãe me liga a cobrar aqui, aproveitando o telefone corporativo. Como de costume pergunta como estou. Normal, respondo, é o que sempre respondo. Quando digo normal quero dizer: a bosta de sempre. Um tanto angustiada, ela relata preocupação crescente com pai. Diz não saber mais o que fazer com ele, a situação tá piorando muito. Meu pai tem alzheimer. Meu avô também tinha. É fato que terei também. E não vai demorar. Já sou meio lesado. Minha memória é nula. Pai, além de alzheimer, tem síndrome de tourette. Lembro que um dia estávamos à mesa, almoço de família na casa deles. Ele sacudiu o saleiro, mas estava vazio. Teve crise de fúria. Arremessou o saleiro na janela. Virou a mesa. Eu, mãe e minhas irmãs ainda estávamos comendo. Ficamos com os talheres na mão. Mesa, pratos, potes e panelas todos quebrados, esparramados pelo chão com a comida. Jogou a estante da sala no chão também. Chutou a porta até derrubar. Foi pra rua e começou a socar os carros estacionados. 

Tourette é osso. Alzheimer também.

No meio da tarde, festa no escritório. Nada pode ser mais deprimente que festa de escritório. É a despedida do estagiário, que está sendo substituído por aquele tipo 7. Esse que tá saindo é bosta tipo 4, esguio, liso, alto, parece uma salsicha. Sorrateiro e molenga. Decidiu sair para se aventurar pela europa. Estou indo restartar a vida, disse ele. Restartar a vida? Que porra é essa? Esses adolescentes adoram inventar merda. Restartar a vida... vai é pra puta que pariu, isso sim.

Todos se esforçam tanto pra sorrir, pra mostrar como são felizes e divertidos. O que mais me irrita nas UC é essa necessidade patética que têm de provar que são felizes e que são adoradas por infinitos amigos. Precisam estar sempre sorridentes e simpáticas ao mundo. Quem pode ser realmente feliz nessa bosta de mundo? Pessoas que se dizem felizes ou são muito burras e acabam gostando da vida porque os outros dizem que devem gostar, ou são pessoas inteligentes mas que vivem dopadas, e assim tem a ilusão de que a vida é algo mais do que um lamentável erro da natureza.

587. 588. 589. 590. 591. 592. 593. 594. 595. 596. 597. 598. 599. 

No auge dessa celebração dos inúteis, aproveito pra uma nova barrigada.

O escritório é tão tosco que o banheiro fica de frente pra mesa do salão de reuniões, que é a única mesa adequada pra uma confraternização envolvendo todo mundo. O banheiro masculino tem três mictórios e três gabinetes com privadas. Um deles fica de frente pra porta que fica de frente pra essa mesa. Às vezes, a toupeirada deixa a porta do banheiro aberta, assim da mesa dá pra perceber que tem alguém cagando, dá pra ver os pés atrás da porta do gabinete, dá até pra escutar os toletes de barro mergulhando na água. Desta forma, uns tem vergonha de cagar ali. Eu não, estou me fudendo, fico meia hora cagando feliz e sorridente.

Sento e inicio a emissão dos torpedos. Um atrás do outro. Caprichados. Daqueles que batem na água e a água bate na bunda. Gosto particularmente de relaxar por bastante tempo, sem estreitar o esfíncter enquanto o barrão está saindo. Se a pessoa estreitar o esfíncter anal enquanto o cocô está saindo, a merda se separa em várias unidades de massa. Se a pessoa não estreita tanto, as massas continuam juntas. Se você conseguir ficar relaxado o suficiente por bastante tempo, dá pra fazer um cocô incrivelmente longo. Assim faço minhas esculturas fecais. Fico tentando desenhar formatos diferentes. Tipo fazer um cocô em forma de J, ou de U, ou um caracol. Quem sabe deixar um pequeno poema de merda na privada. Me considero um artesão da bosta. Tenho muita pena de dar descarga na minha obra.

            Solto um último verso tão grande e pesado que senti meus órgãos voltando pro lugar após ele ter saído. Levanto num susto. A pilha de fezes chegou quase até o topo da privada. Hoje está demais. De onde veio tanta merda? Será que estou enxergando direito? Devo tá delirando de bêbado. Não me lembro de ter feito numa cagada quantidade tão grande. O que comi ontem? Merda, não lembro. Sei que bebi um caminhão, mas comida não foi pra tanto. E o almoço hoje também foi normal, nada diferente. E não é diarreia. Todas sólidas, lisas, bonitas, cor e tamanho adequados. Nada de anormal. Puxando pela memória, de fato nas últimas semanas tenho a impressão de que a quantidade de cada cagada está maior. Mas minha alimentação não mudou. Não que eu me lembre, pelo menos. A bebedeira também continua no mesmo nível de sempre. Melhor marcar um médico amanhã.

            Odeio ir ao médico, quando vamos sempre descobrimos que estamos todo fudidos. Da última vez, o doutor me recomendou melhorar os hábitos alimentares, evitar comer industrializados. Ora, se essas porras fazem tão mal, por que são permitidas? Você vai no mercado, só tem essas porcarias industrializadas. Se tiver algum alimento saudável, o preço é tão exorbitante que só deixando um rim no caixa pra conseguir pagar. Vida saudável... hipocrisia do caralho.

Bem, trabalho cumprido por hoje. E como! Bati recordes de produtividade de merda. Já cumpri com louvor a meta do ano. Hora de ir pra casa. Finalmente. Quase desmaiando de sono.

Na rua, uma cena atípica. Um rolo compressor passando. Nunca havia visto um. Que maneiro. Como nos desenhos e comédias. Como gostaria de ser atropelado por um desses. Totalmente esmagado. Todos os ossos destroçados. Virar apenas um amontoado de pele flácida. Um fim honesto.

Zumbiandando, de forma autômata, só pensando na minha cama, cambaleio pelo metrô, vinte estações. Depois ainda pego um ônibus, mais meia hora de tortura pra finalmente chegar em casa. Acho que vomitei pelo caminho.

Enfim, o recanto do sobrevivente. Já sonambulando, direto pro banho pra me limpar do repugnante mundo exterior e então cama. Ah, não tem nada como dormir. Nada é tão bom. Nem cagar. Gostaria de dormir vinte horas por dia.

Acordo de repente. Tudo muito silencioso. Pego o celular fuleiro que me serve de relógio. Cinco e meia da manhã. Puta merda. Dormi doze horas seguidas. Já era a bebedeira de hoje. Vou ter que robotar… sóbrio! Vontade de faltar. Nem sair da cama. Saco.

600. 601. 602. 603. 604. 605. 606. 607. 608. 609. 610. 611. 612. 613. 614. 615. 616. 617. 618. 

Sonhei que era um vírus. Que contaminava e exterminava toda a raça humana. Foi lindo. Vírus são criaturas sábias e muito mais evoluídas que nós. Queria ter mais sonhos maravilhosos assim.

Vontade de cagar. Mas obviamente vou guardar pro escritório. Nem pensar em desperdiçar meu tempo livre.

Mijada. Café. Roupas. Vestir alguma coisa pra sair. Saco. 619. 620. 621. 622. 623. Percebo uma borboleta amarela pousada em meu guarda roupa. Novidade. Não é comum. Na minha kitnet só havia entrado baratas, pernilongos, baratas voadoras, moscas, pernilongos invisíveis, ratos, ratos voadores, aranhas, aranhas voadoras. Até um pequeno escorpião apareceu certa vez. Mas uma borboleta é inédito, ainda mais tão colorida. Com esse amarelo tão brilhante. Teria entrado pela janela durante a madrugada? Ou já estava aí e não notei?

Abro bem a janela. Pode partir, amiguinha, você não gostaria da minha companhia. Ela voa, mas não em direção à saída, pousa delicadamente na ponta da estante. Tudo bem. Vou indo.

Ponto de ônibus. Apenas eu no ponto. Bus chegando, custo a distinguir o número da linha, ainda tá escuro. É o 300, aceno, mas ele já passa ao largo, em alta velocidade. Que filho da puta. Todos os motoristas de ônibus deviam morrer. Hmm, mas se eles morressem, quem dirigiria os coletivos? Eu é que não. Satanás me livre. Mais gente chega. Vinte minutos depois, novamente o 300. Além de mim, mais três dão sinal. Ele para. Paro na porta. Impossível entrar, deve ter mais de 300 pessoas em pé espremidas. Mas preciso, que escolha? O próximo virá ainda mais cheio. Deixo os outros três entrarem primeiro. Luto para chegar na roleta, fico por ali, talvez dê sorte e não entre mais ninguém até chegar no metrô. Mas no próximo ponto ele já para e entra mais quatro. Vou ter que cruzar a roleta para eles entrarem. Que merda. Para me locomover tenho que esmagar as pessoas já espremidas. Qualquer resquício de espaço na frente das cadeiras está ocupado, fico sanduichado entre dois sujeitos corpulentos com cara de cansaço. Felizmente sou grande e consigo esticar o braço e apoiar no teto para não perder o equilíbrio nas curvas e freadas. Então paramos. Engarrafamento. Sempre engarrafado, todos os dias. Um universo de gente dentro do bus, outro universo dentro dos outros ônibus que circulam pela região e mesmo assim tem incontáveis carros em todas as vias. Carros. Carros. Carros. Carro que não acaba mais. O grande sonho de vida das UC. Entupir o mundo de carros. Sujeito deixa a família passar fome mas não deixa de pagar a prestação do carro. E quando quita a última parcela, acerta um novo financiamento pra trocar de modelo e congestionar as ruas com um carro menos velho. 

Bus leva uma hora pra chegar no metrô. Uma hora! Poderia estar me embebando no Birito's e dali caminhar tranquilamente pro robotamento. Maldito inferno de merda. E a vontade de cagar aumentando. Puta merda. Muita vontade de cagar.

639. 640. 641. 642. 643. 644. 645. 646. 647. 648. 649. 650. 651. 

Na estação metroviária, o acesso ao vagão é um literal campo de guerra. Cotoveladas, pisões, empurrões, mochiladas, bengaladas, tem pra todo mundo. É ainda a primeira estação da linha e já tem gente amassada na porta. Já sai megasuperultralotado, não cabe mais ninguém. E ainda tem mais vinte estações até o centro.

652. 653. 654. 655. 656. 657. 658. 659. 660. 661. 662. 663. 664. 665. 666. 

O celular apita. Várias vezes. Pessoal do escritório criou um grupo no whatsapp:

Bom dia

Bom dia

Bom dia

Bom dia

Bom dia

Bom dia

Bom dia

Bom dia

Bom dia

Vão se fuder

666. 667. 668. 669. 670. 671. 672. 673. 674. 675. 676. 677. 678. 679. 680. 681. 682. 683. 684. 685. 686. 687.688.689. 690. 691.

Desço na primeira estação do centro, com o expresso do inferno ainda ultralotado. Na verdade está sempre lotado, em qualquer ponto, em qualquer horário. Parece até que é de graça. Pelo contrário, passagem subiu de novo semana passada. Sobe proporcionalmente muito mais que meu salário. Como pode ser tão caro se tem sempre tanta gente ali?

Antes de sair do vagão gosto sempre de soltar um peidão, saio sempre quando a porta já está quase fechando, assim o peido fica lá dentro. Minha especialidade peidos fedorentos mas silenciosos, pra todos os passageiros ficarem olhando pros lados, furiosos e se perguntando quem teria soltado aquela bomba.

Li certa vez que produzimos em média um litro de peido por dia. Nada mal. Dizem de um homem que queria cheirar de forma concentrada o próprio peido, então ligou seu nariz ao seu ânus com um sistema de máscara de gás, tubos de borracha e um cano oco de madeira. Ele morreu. Mas não por que seu peido era tóxico. Foi sufocado mesmo.

Salto carregado pela multidão. Para sair da estação desço por uma rampa de acesso, sempre entupida por uma multidão, em qualquer horário. Apresso a caminhada pro escritório. Tá difícil segurar. O primeiro cocô já cutuca o cu mandando um alô e pedindo licença pra passar.

Pelas ruas do centro, em todas as ruas, uma infinidade de robotadores correm para seus empregos inúteis. 

As unidades-carbono escorrem pelas ruas como um amontoado de bosta rolando pelos esgotos.

E o percurso ainda é interrompido pelos intermináveis carros tentando entrar em alguma garagem e bloqueando a calçada. Onde tem uma garagem, tem uma bosta de um carro passando e atrapalhando a passagem dos andantes. Acho engraçado que as moradias não param de diminuir de tamanho, mas os carros não. Minha kitnet é pouco maior que uma van. Já essas lixeiras motorizadas de quatro rodas continuam espaçosas mesmo com as ruas congestionadas. Para que é preciso cinco lugares e um porta mala gigante pro sujeito ir robotar nos hipercentros? 

692. 693. 694. 695. 696. 697. 

Alguma coisa pastosa cai bem no meio da minha cabeça. Merda. Literalmente. É merda de pombo. Vejo vários deles sobrevoando bem acima de mim, me rodeando. Filhos da puta. Me conhecem. Estão se vingando de mim. Putaquepariu. Entro numa lanchonete. Cato uns guardanapos, tento limpar a cabeça e as mãos. Vou ter que tomar um banho de torneira no roboto. Vou pegar um desses pombos filhos da puta e limpar a bunda com ele.

Enfim adentro ao prédio. Estou cagado de pombo, quase borrando as calças e o pior: estou sóbrio! Que merda. E ainda chegando atrasado. Vou ter que sair mais tarde.  Hoje vai ser um longo e insuportável dia.

698. 699. 700. 701. 702. 703. 704. 705. 

Elevador. Sempre lotado. E vou até o vigésimo oitavo andar. Haja saco. Assim que entro, vou logo soltando mais um peidão caprichado, como faço todas as manhãs, sempre que chego. Naquele mesmo estilo, silencioso mas absurdamente fedorento. Eu chamo de "silencioso ataque gasoso mortal matutino diário". Às vezes, monto um elaborado café da manhã, com ingredientes cuidadosamente escolhidos, só pra soltá-los nesse momento, em variadas tonalidades e potência de destruição. Discretamente reparo nas expressões de desconforto pelo elevador... Fico me perguntando se os robotadores que eventualmente chegam comigo desconfiam quem é o peidorreiro... Robotar tem seus bons momentos.

Passo velozmente pelo meu setor e colegas de robotamento. Bom dia. Tudo bem? Foda-se. Corro pro banheiro. Finalmente. Tava quase arriando as calças e cagando no corredor mesmo. Mas que porra… Duas privadas ocupadas e a terceira cheia de papel. O que dá na cabeça desses merdas pra abarrotar a privada de papel? É um dos enigmas da humanidade que gostaria de entender. Esses sujeitos deveriam ser picotados em praça pública e os pedaços servidos para alimentar a família. Esse é outro motivo por que gosto de chegar cedo, ainda não tem quase ninguém no prédio. Corro desesperado pro banheiro do vigésimo nono. Ah, uma privada livre. Se acreditasse em deus, estaria agradecendo efusivamente a ele. Que alívio.

As bolotas vão saindo uma atrás da outra, como se meu cu fosse uma metralhadora. Alívio tão grande que acho fiquei uma hora ali, relaxando. Cagando como se não houvesse amanhã. Às vezes, pra distrair e relaxar totalmente, até vejo uns filmes no celular durante a obrada. Geralmente assisto uns nunsexploitations que encontro na web. Nada mais sensual e erótico que freiras. Minha maior fantasia é trepar com uma. Poderia até ser uma velha, toda amarrotada, não me importaria.

 Caguei tanto que durante o serviço o cu fazia umas interrupções forçadas pra dar uma respirada. O último balaço para encostado ainda na minha bunda. Quando levanto e olho… caralho. O vaso totalmente encoberto. Uma pilha de merda que simplesmente chegou até o assento. Não é possível. Nunca caguei tanto. Impossível alguém cagar tanto assim de uma vez. E ainda tô com vontade de cagar mais. Aperto a descarga. A privada tenta sugar, mas evidentemente não consegue. Completamente entupida. E pior, nem a água da descarga desceu, começou a escorrer pela borda, caiu em meus sapatos, espalhou-se pelo chão.  Que merda. Saio dali rapidamente. E ainda com vontade de continuar cagando, mas agora dá até vergonha de usar a cabine do lado. Do jeito que tô, só cagando em pé, não vai ter bacia que aguente. Fico pensando no sacrifício do cara da limpeza pra limpar esse banheiro hoje. Coitado. Vou dar uma boa gratificação de natal pra ele.

Meio atordoado, volto pra minha baia. Vamos para as importantes notícias do dia. Cientistas estão próximos de encontrar uma cura para podermos partir para a próxima epidemia. O salvador da pátria preso por corrupção. A tragédia do ano passado ataca novamente. Fico imaginando estratégias para conseguir entrar no ônibus lotado. Até que o alarme do meu celular toca, está na hora de sair pro almoço. Passei meio dia pensando em futilidades, deveria estar pensando em coisas importantes. Essa é boa, como se eu fosse alguém importante, ou um gênio capaz de fazer a diferença no mundo. Sou apenas mais um grandissíssimo idiota. Apenas mais um inútil robotizado.

Tempo não apenas nublado, mas chovendo. Maravilha. Já é insuportável caminhar pelas ruas do centro, chovendo então. As águas pluviais carregam toda a imundície produzida pelas UC. Os bueiros transbordam. Poças de esgoto por toda parte. Lagos de sujeira. E, não importa quanto chove, ruas continuam entupidas de UC. Andam em câmera lenta com o guarda-chuva aberto e ainda param nas vitrines. Impossível não trombar o tempo todo nesses estercos ambulantes. Onde estão os homens-bomba quando se precisa deles? Ah, os homens-bomba. Verdadeiros heróis. Se metade da população mundial seguisse seu exemplo, o planeta começaria a entrar nos trilhos.

Sem paciência, entro logo em qualquer restaurante. Durante o almoço, cheiro de esgoto sobressai. Não sei se vem do próprio estabelecimento ou da rua. Ou de ambos. Gosto da comida ainda pior que de costume. Devem tá exagerando nos culiformes fecais. Aliás, uma das principais formas pelas quais doenças e parasitas se propagam é através de água e alimento contaminados com fezes. De fato, é até bastante comum comermos cocô. Ingerimos muito mais do que imaginamos ou percebemos. Após terminar de comer, fico por ali mesmo sentado, esperando a chuva estiar.

Nas outras mesas, é fácil perceber que praticamente toda a clientela é composta de outros robotadores, cumprindo metodicamente sua hora de almoço para voltar aos escritórios e continuar seus importantes robotamentos. Vestidos no mesmo estilo, mesmos gestos, mesmas formas de falar, mesmos assuntos superficiais, e estão sempre em grupo. Acho curiosa esta necessidade dos robotadores de estarem sempre em grupo. Parecem ter um medo pavoroso de estarem sós. Talvez seja o medo de descobrirem o quanto levam uma vida medíocre. Afinal, se estão em grupo, e o grupo está alinhado no mesmo caminho, está tudo certo, está tudo legitimado.  

A solidão é muito importante. Essencial para que pensemos por nós mesmos. Não tenhamos nossas opiniões moldadas pelos grupos sociais. A solidão é o momento verdadeiramente nosso. Quando podemos observar o mundo sem que alguém nos diga para onde devemos olhar, quando podemos refletir sem que alguém nos diga no que devemos pensar. As pessoas acham que são livres. Mas não são. E o pior, não querem ser. Têm sempre que estar em um grupo. Se não é o grupo do emprego, é o grupo do bairro, da escola, do futebol, da família, da igreja. Sempre doutrinados por alguma seita. Só fazem o que o grupo determina. Não possuem personalidade, não têm identidade. Para ganhar identidade, a misantropia é fundamental. Solidão é liberdade. Andar sozinho pelas ruas. Viajar sozinho pelo mundo. Vivenciar seus próprios medos e angústias. Só assim conhecerá a si mesmo e terá uma mínima liberdade.

Assim que volto pra rua, sinto algo me atingir no ombro. É... merda. Merda de pombo. De novo? Estão mesmo se vingando de mim, esses sacanas. Mas percebo cocôs voadores atingindo outros passantes. Vários ratos de asas despejam seu desprezo pelas latrinas humanoides. Um engravatado tenta desesperadamente limpar com um lenço o paletó que foi atingido por vários barrões de uma vez. Dou boas gargalhadas. Talvez pombos não sejam tão ruins. Curioso esse ataque de merda, estarão os pombos com caganeira?

Distraído, ao desviar de uma poça de esgoto, piso em algo pastoso. Uma grande bosta. Gigante. Um elefante passou por aqui? Putaquepariu. Vai ser melhor jogar o sapato fora que tentar limpar. Noto vários montes de cocô, aparentemente de cachorros, pelo caminho. É o dia da diarreia hoje?

Pra variar, meu caminho é interrompido pelo deus maior das unidades-carbono, o carro. Estacionado encima da calçada. Simplesmente ocupando todo o espaço da calçada. Pedestres tem que desviar pelo asfalto pra conseguir seguir. Eu não. Chega. Saco cheio. Num impulso, pulo encima do porta-malas. Ando normalmente pelo teto metálico até o capô dianteiro, deixando pegadas de bosta pela carcaça. Antes de descer, esfrego a sola do sapato, limpando bem a bosta pisada. Até que esse carro veio a calhar. Os demais transeuntes interrompem seu percurso robotizado e me observam, incrédulos. 

               Tá muito estressante ficar pela rua, além daquela vontade de dar mais uma bela cagada. Volto logo pro escritório. Voltei em menos de uma hora, desperdiçando de forma imperdoável minha hora de sol. Acho que depois da barrigada pós-almoço vou tirar um cochilo no sanitário pra compensar. 

                Elevador. Peidão. Vigésimo oitavo andar. Direto pro banheiro. Interditado? Que merda. Subo pro vigésimo nono. Interditado também. E esse foi mea culpa. Correndo pelas escadas em direção ao trigésimo, já ficando ansioso. Ah, uma das cabines livre. Finalmente. Mas, ao levantar a tampa da privada... vaso completamente entupido, até o topo. UC tão de sacanagem. Definitivamente, hoje deve ser o dia internacional da bosta. Ou tá rolando algum desafio da caganeira no facebook. 

               Então a porta da cabine ao lado irrompe de repente, abre numa porrada batendo violentamente na parede. Um corpo desaba ao chão como um saco de lixo sendo jogado num aterro. É o Joano. Robota no vigésimo oitavo também, no meu setor. Joano é típico bosta tipo 5. Aquela de vários pedaços moles e divididos, mas com bordas bem definidas, fáceis de evacuar, um meio termo entre a cagada saudável e a diarreia. É um sujeito medíocre, não acrescenta nada, um tanto chato, mas é espontâneo, não incomoda tanto, dá pra tolerar. 

  Pelo visto ele também teve que subir até aqui pra encontrar uma privada livre. Calça ainda arriada, um rio de bosta vai do seu cu até a cabine. Na verdade, a bosta está transbordando da cabine, um alagamento de merda. Deve ter cagado até entupir não só a privada, mas toda a rede local. A bosta continua escorrendo, pastosa, com alguns pedaços mais sólidos, parecendo uma lama fecal, muito fedida. Começa a encobrir o corpo do infeliz, que permanece imóvel. Terá ele morrido de tanto cagar?

        Minha estase é quebrada quando a bosta da privada que eu iria usar também começa a transbordar. O que é isso? Estou naquele filme The Blob? A Bolha está vindo me pegar? Entro em pânico. Saio dali. No corredor fico pensando que deveria ajudar o Joano. Deveria voltar e tirá-lo de lá. Mas minhas ponderações cessam quando ouço uma explosão, como um gêiser, e então uma onda… sim, uma onda de bosta atravessa a porta do banheiro e se espalha pelo corredor. Só tenho tempo de sair correndo. 

         Vou até a escada. Ouço gritos vindo do andar de baixo. Subo. Trigésimo primeiro andar. O instinto me diz para continuar subindo. Bem a tempo, pois a porta do andar explode e um tsunami de bosta irrompe violentamente, começando a se espalhar pelas escadas. Por meio segundo me pergunto de onde está vindo tanta merda. Mas só por meio segundo, o preocupante é pra onde ela vai. Acelero a corrida e continuo subindo. Já arfando e com as pernas pesadas, mas o desespero me leva até o topo. Trigésimo sexto andar. O fim da linha. Abaixo posso não apenas ouvir, mas sentir o cheiro da bolha bostal em meu encalço. Sigo por um pequeno corredor ainda felizmente livre de ameaça que termina em mais uma pequena escada com uma porta que leva à cobertura. Está destrancada! Graças a deus. Sim, passei a acreditar em deus nesse instante. 

           Estou na cobertura. Fecho a porta e procuro algo para bloqueá-la. Então o céu rouba minha atenção. Acho que nunca vislumbrei o céu de um ponto tão alto. Está agora um lindo dia de sol. Um azul deslumbrante, sem mais nenhum sinal de chuva, nem uma única nuvem sequer. Na trilha dos demais mega edifícios do centro, não apenas um, mas dois arco-íris se formaram, um atrás do outro, como uma sequência de arcos indicando a direção a se seguir. 

            Ela então surge esvoaçante bem à minha frente. A borboleta amarela. Tão bela. Tão perfeita. Idêntica a da manhã. Será a mesma? Ondula sinuosa pelo terraço, como se escrevesse os contornos de um poema pelo ar. Segue até a porta da cobertura, que já foi aberta pela bosta invasora, começando a adentrar naquele refúgio derradeiro. Então pousa suavemente sobre um grande cocô no topo da pilha de excremento. Um cocô feio, magro, pálido, parecendo doente. Fico paralisado, hipnotizado por aquela imagem incrível. O fantástico contraste entre a borboleta amarela, brilhante, poderosa e radiante; e a bosta opaca, molenga e sem cor. Essa era a imagem pra fotografar e viralizar nas redes sociais.

Sons de distúrbios e tumultos me despertam daquele transe. Da borda do espigão posso ver a impressionante confusão na superfície. Um verdadeiro mar de bosta cobre todas as ruas. Bosta de todos os tipos. Sólidas, líquidas, coradas, aguadas, pequenas, grandes, esféricas, cilíndricas, etc. Torrentes explodem dos bueiros. Escapam pelas janelas e portas de todos os prédios e casas. Carros e unidades-carbono são levados pela correnteza fecal. Que cena linda. 

Agacho na borda do prédio. Contemplo a devastação no melhor camarote da história. Nunca senti uma paz tão grande. Assisto o momento maior da civilização. O verdadeiro, inabalável, aguardado e irremediável progresso.

Arrio as calças e viro a bunda pro precipício. A cagada suprema. O alívio absoluto. 

Fecho os olhos, relaxo ao máximo e deixo escorrer como uma cachoeira...

Cagar como se não houvesse amanhã...

901. 902. 903. 904…