RELATOS DA DECOMPOSIÇÃO HUMANA
PÁGINA 2 – UM NOVO MUNDO VELHO
Nâo se preocupe se não encontrou a página anterior, escrevo sem
pretensão de continuidade ou preservação, pois estas páginas são apenas
fragmentos de um rascunho que o mundo se tornou (e o mundo já não era nenhuma
obra de arte).
Depois que tudo acaba você muda completamente seu modo de pensar e agir.
Descobre que tudo que você planejava, seus sonhos e objetivos eram completas
tolices insignificantes incutidas por uma civilização perdida e vazia. Depois
que tudo acaba não há mais credos, não há ideais, não há pelo que lutar. Mas
ainda assim você quer sobreviver. O sentido da vida é esse: pura e simplesmente
sobreviver. Os homens, com suas filosofias pretensiosas, sua curiosidade
inútil, e sua ambição de chegar aonde não pode nem deve ir, não valorizou seu
maior e único bem: sua vida. Mas agora, a vida, a simples vida, parece ser uma
grande causa pela qual lutar.
Hoje contarei a saga de Sua Excelência. Sua Excelência era Juiz de
Direito antes do caos. Nesse momento, é apenas um fugitivo, como todos aqueles
que ainda vivem e habitavam aquela grande metrópole, e agora, em desespero,
tentam escapar do apocalipse. Escapar pra onde, ninguém sabe, e nem se
perguntam, pensam apenas em sair do tumulto.
Sua Excelência dirige seu sedan importado velozmente pela estrada.
Conseguiu escapar da cidade. Agora
percorre um trecho deserto, apenas asfalto e a vegetação ao redor. Checa os
retrovisores, nenhum sinal de qualquer outro veículo. Que alívio. Diminui um
pouco a velocidade. Desliga o limpador do para-brisa, o vidro ainda ficou um
pouco melado pelo sangue dos pedestres que atropelou, mas está desembaçado o
suficiente para enxergar com nitidez à frente. Pensa em sua família. Será que
conseguiram escapar? Bem, não vai voltar lá para descobrir.
Após alguns minutos, talvez uma hora, dirigindo com certa tranquilidade,
respiração e batimentos cardíacos finalmente normais, nova fatalidade. O
poderoso sedan importado, pela primeira vez desde que saiu da fábrica, começa a
engasgar. Porra, não, não faça isso comigo, ordena Sua Excelência. Mas o
veículo, de forma desrespeitosa, continua a falhar, a aceleração cessa, até
parar completamente. Sua Excelência não acredita naquilo. Comprou aquele sedan
zero quilômetro, há um ano e meio atrás, e nesse período nunca precisou levá-lo
a mecânico, nunca teve nenhum problema. E vem deixá-lo na mão logo agora, na
mais crítica das situações?
Possivelmente o problema deve ter sido ocasionado pelas batidas de
raspão, durante sua fuga alucinada, em outros carros, motos, pedestres, árvores
e diversos obstáculos que dificultavam sua saída da cidade. Olha pro painel e
tenta lembrar qual botão abre o capô. Mas não faz diferença, não entende nada
de mecânica, nunca vai descobrir qual o problema. Tantos anos de estudo, tantos
livros e leis, deveria ter estudado mais mecânica.
Sem outra saída, sai do carro. Sensação de completo abandono. Está
largado, desamparado. Antes do caos, nunca precisou se preocupar com nada,
sempre havia outros, os
subservientes, para fazer tudo por ele. E agora? Que fará? Pra onde vai? Pra
lugar nenhum, não pode simplesmente abandonar um sedan de 300 mil dólares, fatalmente
irão roubá-lo. Não pode permitir isto. Senta sobre o capô e espera. Alguém há
de aparecer.
O sol passa a incomodar. Maldito carro, poderia estar no seu ar
condicionado. Não queria, mas vai ter que tirar o terno para aliviar. Sua
Excelência nunca antes tirou o terno em público, fosse qual fosse o calor. Nisso,
ao levantar do capô, outro carro surge no horizonte, vindo no mesmo sentido em
que Sua Excelência trafegava. É uma viatura. Que sorte!
Imediatamente saca do bolso sua identidade funcional e a levanta em
destaque. Nenhum policial ousaria deixar de prestar atendimento a um Juiz. Sem
desacatá-lo, a viatura de fato encosta. Para alívio de Sua Excelência, um
policial fardado sai pela porta do motorista.
-Boa tarde, policial – cumprimenta, aproximando a identidade para que
seu socorrista e possível motorista particular não tenha qualquer dúvida.
-Boa tarde, doutor. Sofreu algum acidente? Está bem?
-Estou bem, mas meu sedan infelizmente não. Preciso de carona. Está indo
pra qual cidade?
-Carona? Puxa, - responde meio sem graça – tem um problema.
Aponta pra viatura, em que três pessoas no banco de trás e uma no banco
do carona estão prostadas, gemendo. Parecem bastante feridas, sujas e
sangrando.
-Estamos indo pro hospital mais próximo, em Pangualândia. Espero que
esteja funcionando. Essas pessoas precisam de atendimento. Foram as únicas que
consegui salvar. Como o senhor pode ver, o carro tá lotado.
-Puxa, isso é terrível. Eu lamento muito por essas pessoas. Mas
infelizmente estamos em uma situação de calamidade e certas medidas
desagradáveis precisam ser tomadas. Policial, sinto muito, mas precisarei
requisitar sua viatura.
-Mas... não vai caber todo mundo no carro...
-Sim, infelizmente. Peço que retire todas essas pessoas da viatura. Eu a
guiarei até Pangualândia e ordenarei que seja providenciado o devido socorro
para vocês. Aguardem aqui junto ao acostamento a chegado da ajuda. O rádio da
viatura está funcionando, policial?
O humilde executor da lei por um momento parece não acreditar naquelas
ordens, fita abobado o juiz, que continua empunhando sua identidade funcional
para lembrá-lo de que está falando com a própria personificação da justiça e
ordem.
-Hã... não. Não consigo comunicação por rádio.
-É uma pena. Que situação catastrófica. Mas temos que ter fé, policial.
Essa tragédia será contornada. Se conseguimos sobreviver até agora,
sobreviveremos até o fim. Agora, por favor, retire essas pessoas da viatura.
Sem se atrever a descumprir seu ofício, o jovem oficial abre a porta do
carona e começa a carregar o primeiro passageiro para fora.
-O que está fazendo? – balbucia o infeliz moribundo, quase inconsciente.
-Desculpa, pessoal, mas ele é autoridade, temos que obedecer.
Descarregada toda a bagagem humana junto ao acostamento, Sua Excelência
enfim pode assumir a direção. Fica feliz pelo assento do motorista não estar
encharcado de sangue como os outros, o que diminui o nojo de entrar naquele
carro. Não é um sedan importado, mas é a opção disponível. Consola o policial
mais uma vez, pedindo para que acalme os feridos e tenha paciência, a ajuda não
tardará. Então parte em alta velocidade.
Após se distanciar, pensa novamente no sedan. E se aquele policial o
roubar? Não, ele não se atreveria. Quando chegar à próxima cidade, poderá
requisitar ajuda para resgatá-lo. Bom, ele já tinha um ano e meio de uso mesmo,
já estava na hora de trocar. Dirige
sossegado por cerca de uma hora, sem se deparar com nenhum outro veículo ou
alma viva, pensando em qual poderia ser seu próximo carro, e então... só
então... percebe uma luz vermelha piscando no painel. A gasolina. Não, não pode
ser! Vai ficar sem gasolina em breve. Não é possível tanto azar!
Tenta não se desesperar, nada a fazer senão continuar até onde der. Mais
alguns minutos e... o que é aquilo? Uma barreira na estrada. Não, uma batida.
Dois caminhões parecem ter se chocado e ficaram atravessados na pista. Não há
como passar. Bem, ele não iria muito longe mesmo. Talvez algum dos caminhões
esteja funcionando. Ou tenha gasolina. Ou comida. Sente fome.
Desce da viatura e se aproxima, quando repentinamente surgem três homens
vindos de trás de um dos caminhões correndo em sua direção.
-Pega o safado.
Não tem tempo de reagir e os três estão sobre ele, socando e chutando
até derrubá-lo e então chutando mais.
-PM de merda!
Um deles tem o cuidado de tirar seu terno para aproveitar a bela peça de
roupa:
-Deve ser delegado esse cretino. Olha que terno bacana. Vou ficar com
ele.
Depois de castigá-lo o suficiente para que não tenha condição de reagir
ou levantar por algum tempo, prendem seus braços de forma improvisada com um
cinto. Sua Excelência não consegue
raciocinar direito, sente muita dor em todo o corpo, nunca sentiu tanta dor,
acredita que está com os braços, pernas e costelas quebrados, tem a sensação de
ter perdido vários dentes, o rosto inchado, não consegue enxergar direito,
respira com dificuldade. Dois dos seus opressores o mantém estirado no chão
enquanto o terceiro vai até a viatura.
-Mas que merda.
-Que foi?
-Está sem gasolina. E não tem também nenhuma arma ou qualquer coisa que
possa ser útil.
-Porra. Esses porcos não servem pra nada mesmo. - Dá mais um potente
chute nas costelas de Sua Excelência, que o faz berrar de dor. O outro também
volta a chutá-lo e sua excelência imagina que é o fim, está morto. Mas o
terceiro retorna gritando:
-Esperem. Parem. Tive uma ideia. Vamos usar esse porco como isca.
-Como isca? Lá naquele posto?
-Isso. Jogamos ele pela porta da frente. Enquanto os bichos se ocupam
dele, entramos pelo fundo e fazemos a limpa rapidamente.
-Pode funcionar. Vamos tentar.
Aterrorizado, Sua Excelência sabe muito bem o que eles quiseram dizer
com “bichos”. Grunhe e se debate enquanto é erguido, mas os agressores o seguram
com violência e cobrem sua boca com uma fita. Mal consegue andar, mas é
arrastado pelos três. Não sabe quanto tempo andaram, quase perdeu os sentidos
várias vezes, só percebe o anoitecer a se aproximar. Até que chegam a uma velha
construção. Um posto policial.
Dois dos homens o seguram, o terceiro se aproxima da janela.
-Eles ainda estão lá. Um monte de criaturas.
-Vamos, porco. Hoje você vai ser o prato principal da reunião de zumbis,
hahaha.
O que espiava a janela vai até os fundos e logo retorna.
-Tudo da forma como deixamos. Enquanto eles estiverem ocupados com o
delegado, temos que ser rápidos. Pegamos quantas armas e munição conseguirmos
carregar e saímos sem demora. Prontos?
-Vamos lá.
Sua Excelência grita não, não, mas apenas grunhidos passam pela fita
selante. Um dos malfeitores abre sutilmente a porta e os outros o jogam dentro.
Sua Excelência agora desperta totalmente ao ver o que se encontra no recinto.
Muitas, muitas, muitas criaturas. Deve haver umas vinte ali.
Elas aparentemente estavam paradas ou cambaleando desconexas, mas então
parecem perceber sua presença. Viram-se todas pra ele, em estado de choque
junto à porta, amarrado e amordaçado. Passam a caminhar em sua direção. O cheiro
dos gases de putrefação e carne podre beira o insuportável, o que aumenta a
agonia de Sua Excelência. As pernas tremem, desaba no chão. Os seres repulsivos
que um dia foram humanos logo estão sobre ele. Em estado de choque, sem
conseguir se mover, Sua excelência apenas fecha os olhos. Entao sente... sente
mãos frias e ásperas o tocando. Logo está encoberto pelos mortos ambulantes, o
fedor quase o faz desmaiar.
Dois agressores observavam da janela e gritam eufóricos:
-Deu certo. Os que estavam nos fundos também estão vindo. Vamos.
O outro segurava a porta para evitar tentativas de fuga, agora pode
correr também em direção aos fundos.
Sua Excelência, jogado ao chão, permaneceu em choque por algum tempo.
Segundos, talvez minutos, enquanto os demônios o apalpavam e se amontoavam.
Podia sentir o toque gelado da peste e da morte. Sentia... meu deus... larvas e
vermes e fluidos indescritíveis escorrerem daquelas carcaças decrépitas sobre
seu corpo, sobre sua roupa social impecável.
Abre então sutilmente os olhos, bem a tempo de ver o rosto medonho de um
dos desmortos a centímetros do seu, o encarando com aquelas duas órbitas
vazadas e a boca aberta de onde sai uma baba cinzenta e gosmenta, que mais
parece a regurgitação dos órgãos internos se liquefazendo e escapando pelas
mucosas. A baba viscosa horripilante
escorre... e escorre... cada vez mais perto...
De repente, num surto alucinado, Sua Excelência explode em fúria e
desespero. Não sabe de onde tirou forças, como se esquecesse do corpo surrado,
consegue se chacoalhar e levantar, afastando aquela horda pós-humana. Percebe
que o cinto que prendia suas mãos se soltou. Liberta os braços, tira a fita de seus
lábios e solta um urro estrondoso como jamais havia gritado em sua vida,
fazendo as coisas pestilentas se afastarem, aparentemente assustadas.
Utilizando do próprio cinto, parte para o ataque, inflamado por uma ira
assassina.
Sobre o morto-vivo mais próximo, aquele que quase o babou, desfere um
potente soco na cabeça. Sente sua mão afundar, um coágulo de fluido asqueroso
jorra pelo rosto pálido, então o cadáver desaba como um boneco desarticulado.
Desfere socos, chutes, cintadas, em tudo que vê pela frente. Sangue,
pedaços de pele, de tecidos necrosados e até mesmo de ossos, vermes e insetos
antropófagos que residiam nas carcaças, pastas de necrochorume, e excrecências
de todo tipo voam pra todo lado. Um baile descoordenado de matéria orgânica
decadente envolve todo aquele recinto que outrora foi um ordeiro posto policial.
Sua Excelência ainda chicoteia o ar por um momento até perceber que só ele
restou de pé.
Não acredita, derrotou todos os zumbis. Se sente um herói em um filme.
De onde tirou tanta força? O espírito agora está renovado. Os monstros podem
ser destruídos. Talvez haja esperança. Saltando sobre toda aquela massa pútrida
repugnante, percorre a sala principal em direção aos fundos. Não encontra mais
nada nem ninguém. Seus seqüestradores pelo visto já limparam o lugar e se
foram. Malditos. Se Sua Excelência os pegasse agora, daria o troco. Sente uma
energia sobrehumana percorrendo seu corpo. Corre para fora. A noite já se
debruçou sobre a vastidão do campo. Para onde ir? Não importa. Aproveita a
disposição que sente e apenas segue a estrada.
Minutos depois, ou teriam sido horas?, o corpo torna a latejar. Pelo
visto, a disposição que sentia era apenas o sangue quente. Membros, costas,
tudo dói. Sente fome. Devia ter ficado no posto até o dia seguinte. Não. Não
poderia dormir no meio daquelas criaturas. Fome. Além da estrada deserta,
apenas mato e árvores ao redor. Não tem a mínima idéia de como arrumar comida. Queria
ter acampado mais nas férias, ter feito um curso de sobrevivência no campo.
Cada vez maior o cansaço, segue se arrastando pelo tempo, sensação de
estar caminhando horas. Será que está amanhecendo? Não, lua ainda domina o céu.
Quantas estrelas. Nunca havia visto tantas estrelas. Mas então... uma cancela
na margem e uma pequena trilha quebrando a mesmice da estrada. Deve ser a
entrada de uma fazenda, ou pelo menos uma casa. Uma casa! É tudo que deseja.
Nenhum cidadão lhe negaria refúgio.
Segue cambaleante pela trilha, que serpenteia brevemente a vegetação até
despontar na salvação. Uma casa, logo mais à frente. Pequena e rústica, mas um
lar. Deve ter comida e uma cama. Tudo o que Sua Excelência precisa.
O lugar possui apenas um pavimento e aparenta estar vazio, com as luzes
apagadas. Aproxima-se devagar, lembrando da emboscada anterior. Melhor que
esteja abandonado mesmo. De toda forma, não tem escolha. Está exausto.
Chega à porta, gira a maçaneta. Destrancada. Entra cauteloso. Breu
total. Tateia a parede procurando interruptor. Um golpe perfurante na barriga.
Que dor! Nunca sentiu tanta dor. Pernas tremem. Desaba ao chão. Luzes se
acendem, mas a consciência começa a apagar.
-Não falei? É o filho da puta que jogamos no posto. De alguma forma,
conseguiu escapar e nos seguiu. Devia estar querendo se vingar.
-Achou que ia nos pegar dormindo ou desprevenidos? Que idiota.
Sua Excelência não tem condições de responder, nem consegue escutar mais
nada, apenas aperta o estômago e sente o sangue quente transbordar por suas
mãos. Pressiona, num gesto mais intintivo que racional, tentando cobrir a
ferida, mas o sangue jorra mais e mais. Tantos anos de estudo, tantos livros e leis, queria ter estudado primeiros
socorros. Mas, a essa altura, já não faria muita diferença...
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