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SOU O QUE SEREI

quarta-feira, 29 de junho de 2022

visita ao psiquiatra

 visita ao psiquiatra



Quantos amigos você tem no feissebuque?


Achou estranho aquela ser a primeira pergunta do psiquiatra, não entendeu qual a relevância, mas respondeu:


Eu não tenho feissebuque.


O que? Como assim?, exclamou perplexo o psiquiatra.


Não tenho. Não gosto.


O psiquiatra o encara, sério, de forma constrangedora, por um tempo que parece uma eternidade. O paciente queria escapar dali, mas permanece imóvel.


Você não gosta de ter amigos?


Eu tenho amigos. Eu não gosto do feissebuque.


O psiquiatra continua o encarando, muito sério, então faz anotações no celular. O paciente por um momento se arrepende de ter marcado essa consulta, mas era muita pressão da família e colegas de trabalho. 


Você não acha que seus amigos ficam tristes por você não curtir e compartilhar suas postagens?


Não acho que isso seja o mais importante em uma amizade.


O psiquiatra arregala os olhos, meio embasbacado.


Só um minuto, com licença.


Ele sai da sala. O paciente pensa em dar o fora, mas continua ali, aguardando. Um tempo depois, a porta volta a se abrir. Quatro enfermeiros brutamontes, que mais parecem halterofilistas, entram. Vão ao encontro do paciente, o agarram, imobilizando.


O que é isso?


O psiquiatra também entra, retornando.


Por favor, não se debata. É para o seu bem.


O que? Mas…


Antes de apagar, sente apenas uma seringa penetrando em seu braço.


***


O paciente está num quarto, trancado. As pernas acorrentadas na parede, para evitar que se locomova. Já os braços estão livres. No recinto, apenas um objeto, bem na sua frente. Um celular, ligado e já conectado, com o famoso site aberto. Uma mensagem em fontes garrafais se destaca na tela:

CADASTRE-SE E ENCONTRE TODOS OS SEUS AMIGOS EM UM ÚNICO LUGAR!


quarta-feira, 8 de junho de 2022

A PEREGRINAÇÃO DO SERVO DE ISHTAR continuará?

 

A peregrinação do servo de Ishtar 

continuará?


Levanto. Ela está deitada de costas, em sono profundo. Em um movimento inconsciente, se vira de lado. A coberta sinuosa ondula sobre seu corpo, revelando, pouco a pouco, costas, quadris, coxas, panturrilhas, tornozelos... Fico cerca de meia hora contemplando suas formas. Vou até a pequena varanda de nosso quarto e recebo o raiar do dia, nu e de pau duro. A rua, dois pavimentos abaixo, é razoavelmente movimentada. Algumas pessoas olham pra mim mas parecem não se importar. A população aqui é mesmo diferenciada. Povo desencanado, despojado, sem moralismos fajutos. Abro os braços, deixo o verão me banhar por completo. O sol sobre meu corpo faz com que meu pau permaneça duro por um bom tempo. Que sensação! Contemplo a paisagem, pessoas praticando corrida e caminhada, ou sentadas filosoficamente nos bancos da pequena praça. Será que finalmente encontrei o meu lugar?


quarta-feira, 1 de junho de 2022

NUVEM

 


NUVEM



não suporta nada que seja popular 


  nada que as outras pessoas fazem consegue fazer     


 vomita se assistir tv   


 também não gosta de navegar na internet  


 nem de música 


 nem de ler 


 não gosta de passear 


 nem de viajar       


  do que gosta?  


bem 


 uma coisa que gosta


 é acompanhar a rotina das formigas  


  perto de casa tem um formigueiro


 e todos os dias fica assistindo 


elas procurarem alimento 


e desbravarem aquele mundo enorme dominado pelos humanos.


também gosta de ver e sentir a água escorrer pelo seu corpo enquanto toma banho  


 sentir aquele leve e sutil toque da água é maravilhoso  


um prazer por todo o corpo  


 quando termina o banho  


desliga o chuveiro  


mas não se enxuga   


deixa as gotas passearem pelo seu rosto 


 abdomem  


braços 


e pernas  


 fica ali 


 imóvel


 pra não atrapalhar o curso dos filetes de água    


curtindo esse momento 


 até o corpo estar completamente seco.


outra paixão


 é agitar um pano ou qualquer outra coisa 


e ficar vendo as partículas de poeira flutuando no ar  


 às vezes acompanha a trajetória de uma dessas partículas em particular 


  o que é difícil   


ela pode ficar um bom tempo dançando pelo espaço se estiver ventando   


 outras vezes fixa o olhar num determinado ponto e observa as poeiras que por ali trafegam.


gosta de bagunçar o cabelo e depois contemplar aqueles fios entrelaçados


  aquela geometria caótica.


gosta de escutar os sons dos carros 


ônibus 


caminhões


motos


 etc 


vindos da rua


gosta de ir até a janela 


e fechar os olhos 


para sentir apenas o som


aquela avenida é bem movimentada


 sempre há sons de carros por toda a madrugada.


a família tem dificuldade em conviver com seus hábitos  


mas acabaram aceitando    


  já ter amigos seria demasiado   


 nenhum amigo te suportaria


 e você só suportaria outro fóbico excêntrico  


ou nem isso.


evidentemente 


não suporta multidão  


 na única vez que esteve no centro da cidade em um dia útil comum 


quase entrou em colapso  


um pânico inexplicável e incontrolável 


  não consegue ficar em um ambiente com mais de uma pessoa   


 não pode sequer jantar em família  


 além de pai e mãe ainda moram juntos a irmã mais velha e a avó 


 gente suficiente pra te deixar em angústia    


 no entanto  


sai à rua normalmente  


contanto que seja só aqui pelas redondezas  


  às vezes gosta de ir até a praça  


 ela tem muitas árvores  


 analisa cuidadosamente o tronco e os galhos delas  


 alguns pedaços que se desprendem e caem no solo são tão pequenos que quase passam despercebidos   


    alguns tem uma cor mais intensa que outros  


ou um desenho curioso diferenciado 


 passa horas os observando.


gosta também de olhar as nuvens  


 creio que esse seria o mais popular dos seus hábitos  


muita gente também gosta de olhar as nuvens  


 mas diferente das outras pessoas  


  não vê elas formarem várias figuras diferentes   


vê sempre a mesma imagem   


uma carruagem  


 e se imagina sobre ela  percorrendo o espaço  


viajando entre as outras nuvens 


 outras carruagens   


 mas por que as outras estão todas vazias? 


 com a sua explora toda aquela imensidão celeste    


celebra aqueles pontos indecifráveis lá embaixo 


 que pra você sempre foram pontos indecifráveis 


 mesmo quando estão ao seu lado     


 persegue sol e lua  


abre os braços pra receber o infinito


 e finalmente se deixa fundir ao horizonte     


 lembra de sua infância  


 os adultos sempre perguntavam às crianças o que elas queriam ser quando crescessem  


 uns queriam ser médicos 


 outros engenheiros 


 outros jogadores de futebol   


você sempre respondia  


quando crescer


  quero ser nuvem