TOBIAS
A
luz do sol ilumina um caminho radiante que serpenteia pelos trechos de
vegetação mais densa da floresta. Por essa trilha que forma um leque luminoso
entre as folhagens caminha Tobias, que assobia canções quase esquecidas de sua
infância. As coloridas flores que enfeitam o solo dançam em harmonia com a
brisa. Cores diversas se juntam ao azul do céu, denunciando um grande arco-íris
que começa a se formar. Que belo dia, exclama Tobias em alto e bom tom. Debaixo
de três grandes carvalhos e cercada por uma sebe de aveleiras, uma casa. Uma
singela casa de campo com a porta entreaberta. Tobias atravessa a cerca, cruza
o belo jardim muito bem cuidado de lindas rosas e girassóis e pára na entrada.
Bom
dia! Dona Maria, a senhora está aí?
Sem
resposta. Atravessa timidamente a porta e grita de novo:
Dona
Maria! Sou eu, Tobias!
Desta
vez uma voz grave e rouca responde vinda de algum cômodo no interior da casa:
Pode
entrar, Tobias. Estou no quarto.
Atravessa
então a porta, atingindo a sala principal. Um ramo de orquídeas coloridas jaz esquecido
no chão. Um gato branco dorme silencioso sobre uma almofada de veludo. Um
periquito que a tudo observa de sua gaiola produz apenas silêncio. O grande
relógio de pêndulo marca quatorze horas e dez minutos. A quietude é total, se a
paz decidiu fixar residência em um lugar, foi ali naquela casa. Caminhando com
leveza, sem querer interromper aquela mansidão, Tobias abre as cortinas que separam
a sala do quarto. Lá está Dona Maria deitada na cama, quase totalmente
encoberta. Apenas a touca que cobre sua cabeça e os óculos que cobrem seus
olhos negros são visíveis.
O
que houve, Dona Maria? A senhora está doente?
Uma
voz débil e rouca responde com dificuldade, pausadamente:
Sim,
meu filho, estou muito doente. Minha garganta dói, mas consigo falar.
É,
reparei que sua voz está bem estranha.
Na
última vez em que Tobias
viu a Dona Maria, há vários anos atrás, ela já era bem velha. Imagina que agora
ela deva estar nas últimas. Realmente sua aparência é bem estranha. Ao lado da
cama, a janela está fechada. Sobre o criado-mudo, uma cesta contendo uma
garrafa de vinho e um atraente bolo todo em camadas enfeitado com miosótis,
ainda intocado.
Parece
que não voltei numa hora muito boa, né? A senhora se lembra de mim? Já faz um
bom tempo!
Hã...
sim, claro que lembro. Como tem passado?
Bom,
a gente vai levando, né? Eu...
Subitamente,
tem a impressão de ter ouvido algum som vindo da cama, como uma outra voz.
A
senhora disse alguma coisa?
Não,
não disse nada. Você é que ia dizendo...
Bom,
é que eu voltei pra...
O
som de novo, desta vez um pouco mais claro, mas muito abafado, como alguém com
uma mordaça tentando falar. Parece uma voz de criança vinda de baixo da cama.
Você
ouviu isso?
Isso
o quê?
Ouvi
alguma coisa vindo de baixo da cama.
Tobias
agacha-se e olha sob o móvel. Vê apenas os chinelos gastos da velha, e nada
mais.
Eu
sou a doente aqui, mas parece que é você que está delirando, rê, rê.
Estariam
meus ouvidos debochando de mim?, pensa Tobias enquanto alisa a espessa barba.
Seus sentidos sempre foram tão aguçados e eficazes.
Que
estranho. Tenho quase certeza que...
Agora
Tobias não tem dúvidas. A voz soa mais forte, embora ainda abafada. E vem
claramente da cama. Parecem gritos, alguém pedindo por socorro.
Tem
mais alguém aí debaixo das cobertas?
O
quê? O que está querendo insinuar? É claro que não!
Tobias
repara no grande volume sob a coberta. Parece que a franzina velhinha que
conheceu engordou um bocado, ou então...
Num
rápido impulso, puxa a coberta, sem que a Dona Maria possa impedir. Com a cama
desnudada, revela-se a verdade. Realmente não há mais ninguém ali.
Só
o corpo da velhinha agora é totalmente visível. Uma camisola recobre o
avantajado corpo da enferma. Sua enorme barriga parece o de uma grávida prestes
a dar a luz. Inclusive alguma coisa parece estar se movendo lá dentro, em
fortes contrações, como se fosse o feto lutando pelo direito de nascer. Além de
enorme, peluda. Peluda como o rosto. Apoiando os óculos, estende-se um longo
focinho, uma grande boca ilustrada por caninos imponentes e firmes que
despontam em um sorriso amarelo. Braços e pernas peludos desembocam em patas de
unhas afiadas. Orelhas grandes, pontudas e... também peludas.
Está
vendo? Só tem eu aqui, sua amiga, Maria.
Tobias
examina assombrado aquela figura por um momento, mas as palavras não tardam a
reaparecer em seus lábios:
Um
lobo! Um maldito lobo! E ainda quer me fazer de idiota?
O
grande machado passa da cintura pra mão. Tobias o ergue vigorosamente no ar.
To-tobias...
pra que esse machado tão grande?
É
pra te fatiar melhor, safado.
A
afiadíssima arma desce como um relâmpago, rasgando no ar uma parábola de aço e
morte. Mas se detém a um milímetro do crânio do lobo. De olhos arregalados
frente ao frio metal que chegou a tocar seus pêlos, o lobo sussurrava baixinho,
sem conseguir conter sua incredulidade:
Putaquepariuputaquepariuputaquepariuputaquepariuputaquepariuputaquepariu.
Tobias
resolve não matar o lobo... ainda. Imagina que ele deve ter engolido a velha,
não pode despedaçá-lo. Apenas dá uma pancada na cabeça do animal com o lado de
sua arma para nocauteá-lo.
Olha
a carcaça com seus experientes olhos de caçador.
Hmmm...
acho que posso vender essa pele por um bom preço.
Toca
o corpo para sentir a textura quando algo novamente se debate dentro da grande
barriga.
Já
vou libertá-la, D. Maria.
Com
a tesoura de costura da velha, corta o abdômen da criatura, rasgando banha,
tripas e órgaos. Para seu espanto, de lá sai uma jovem garota, um tanto
assustada, vestida com um chapeuzinho de veludo vermelho.
Eu
estava com tanto medo. Era tão escuro e apertado lá dentro.
Quem
é você?
Me
chamam de Chapeuzinho Vermelho, mas meu verdadeiro nome é Creonícia. O lobo
comeu minha avó, se disfarçou dela e me enganou.
Por
um instante Tobias se detém e observa a garota atentamente, por inteiro. Os
cabelos loiros entrançados, a saia curta, os lábios vermelhos como o sangue e a
pele alva como a neve.
O...
o que você está olhando?
Tem
uma tripa pendurada na sua orelha.
Oh!
Mais
um gemido, é Dona Maria que também sai do estômago do canídeo. Ainda viva, mas
mal podendo respirar. Tobias a acolhe. Os olhos da velhinha brilham de alívio e
alegria.
Como
estou contente em vê-lo, Tobias, ainda bem que ouviu os nossos gritos.
Pois
é, D. Maria, parece que cheguei bem na hora.
E
como! Vejo que depois de tanto tempo conheceu minha neta, a Chapeuzinho.
Sua
neta? Então ela é filha da...
Isso
mesmo. Ela nasceu alguns meses depois que você partiu. – súbito, a velha olha
os arredores – Mas, espere... onde está o Cícero?
Quem?
Cícero,
o porquinho.
Hã?
Não tem mais ninguém aqui.
D.
Maria corre até o corpo do lobo e olha em seu interior – Antes de vir até aqui,
o lobo me contou que havia devorado o Cícero também. Mas ele não está aqui.
Onde foi parar?
Vovó...
– balbucia Chapeuzinho meio sem jeito – depois de ter me comido, tenho a
impressão que o lobo foi até o banheiro.
Oh,
não! – vovó corre até o banheiro, seguido por chapéu e Tobias.
Vai
direto a privada e para seu horror lá está um chapéu e uma flauta boiando nas
densas águas sanitárias.
É
o chapéu dele. – diz entre soluços – e a flauta da qual ele nunca se separava.
Oh, que coisa horrível! O que vou dizer ao Heitor e ao Prático?
Depois,
recobrados do trágico evento, os três estão sentados à mesa comendo bolo e
vinho. Vovó não consegue evitar um leve arroto e afirma: ah, agora sim estou
bem melhor. Chapeuzinho conta o que aconteceu:
Minha
mãe pediu pra eu trazer o bolo e o vinho pra vovó, que está um pouco doente, e
me pediu pra seguir sempre pela Estrada Reluzente, mas eu decidi pegar um
atalho pela Floresta da Destruição, então eu...
Tá
bom, querida, tudo bem – corta a vovó – o importante é que você aprendeu a
lição, né?
Sim,
nunca mais sairei da estrada e penetrarei na floresta, quando isto for proibido
por minha mãe. Sempre obedecerei ela.
E
os demais adultos. Pois nós adultos sempre temos razão, somos inteligentes,
controlados e sensatos. Não é, Tobias?
Certamente
que sim.
Esse
aqui também aprontou das suas quando era moleque. Lembro muito bem, pois eu
troquei suas fraldas várias vezes. Lembro de quando ele se engraçou com sua fada
madrinha e...
D.
Maria, pegue mais um pedaço de bolo. – interrompe Tobias rispidamente – Você
precisa se alimentar bem.
Sim,
sim, mas me diga, Tobias, o que o faz voltar?
Tenho
négocios a tratar por estas bandas. Vinha passando e aproveitei pra visitá-la.
A propósito, você ainda guarda aquele rifle cano duplo que pertenceu ao seu
finado marido?
Sim,
mas você sempre preferiu o machado.
É
que tenho caçado umas presas bem grandes e perigosas ultimamente e o rifle
facilitaria muito.
Ele
está junto das antiguidades da família, venha que lhe mostro.
Nesse
instante lampeja uma idéia na mente de Chapeuzinho:
Vovó,
posso brincar de encher a barriga do lobo com pedras?
Claro,
meu anjo, mas se ele acordar nos chame.
Oba!
Enquanto
a menina sai correndo feliz para buscar pedras no jardim, D. Maria guia Tobias
até uma pequena sala ao lado de seu quarto, a sala de armas. Lá estão dispostos
diversos artefatos, muitos já considerados antiguidades, de indescritível
valor. Duas armas se destacam e brilham mais que as outras, um ornamentado
escudo e uma portentosa espada.
Como
você pode ver eu também ainda guardo o Escudo Encantado da Virtude e a poderosa
Espada Cantante da Verdade, que pertenceram ao meu antepassado Cicerônio, o
Uno. Você pode levá-los de quiser.
Não,
obrigado, levarei apenas o rifle mesmo.
Vovó
suspira ao rever aquelas armas históricas:
Cicerônio,
o Uno, morreu vítima do Grande Dragão Cinza, o Dragão do Ácido.
Ele
cuspiu ácido nele?
Não,
ele peidou. Imagine o que pode provocar o peido de um dragão de trinta
toneladas que cospe ácido. Infelizmente nada, nem a Fada Azul pôde salvá-lo. O
coitado foi completamente desintegrado com este ataque inesperado.
Os
dois trocam mais algumas memórias até que Chapeuzinho chama da sala. Quando lá
chegam, encontram a menina orgulhosa apontando seu trabalho:
Vejam,
não ficou bonito? Ele está acordando.
Desajeitadamente,
o lobo tenta se levantar. Sua barriga deformada por inúmeras pedras foi
meticulosamente costurada por Chapéu. Ele apalpa desesperado seu grotesco
abdômen enquanto procura se manter de pé. Tobias, vovó e Chapéu divertem-se
frente àquela cena cômica. O lobo sente uma dor horrível, cospe sangue aos
borbotões. Arrisca dar um passo, mas não suporta o peso das pedras, perde o
equilíbrio e cai de cara no chão. Todos riem, altas gargalhadas. O lobo se põe
de quatro, numa patética tentativa de se reerguer. Olha para seus algozes
desesperadamente, pediria clemência se não tivesse quebrado a mandíbula na
queda. Tenta encontrar piedade nos olhos de Chapeuzinho mas só vê um olhar de
escárnio e um sinistro regozijo.
Ele
deve estar tendo inúmeras hemorragias internas. – gargalha Tobias - Vamos
deixá-lo sangrar até morrer. Seguirei meu caminho...
Mas
o lobo cambaleia desajeitadamente, tentando caminhar com tamanho peso, acaba
tropeçando e cai violentamente, explodindo a cabeça na quina do grande relógio
cuco que marcava exatamente cinco e quinze da tarde. Vovó, Tobias e Chapéu
também explodem... em gargalhadas.
Bom,
é isso – recompõe-se Tobias - É melhor você descansar agora, D. Maria.
Chapeuzinho, me ajude a liberar a sala. Enquanto retiro a pele do lobo, você
limpa o sangue e os pedaços de cérebro espalhados pelo chão.
Tudo
bem.
Depois
do serviço, vovó pra Chapéu:
Já
está ficando tarde, querida. É melhor você voltar pra casa.
Eu
levo ela até lá – intercede Tobias – estes bosques estão muito perigosos hoje em dia. E aproveito pra rever
a mãe dela.
E
assim eles partem.
Seguem
pela estrada sinuosa. A luz do sol ilumina o caminho radiante que serpenteia
pelos trechos de vegetação mais densa da floresta. A trilha forma um leque
luminoso entre as folhagens. As coloridas flores que enfeitam o solo dançam em
harmonia com a brisa. Cores diversas se juntam ao azul do céu, denunciando um
grande arco-íris que começa a se formar. É realmente um belo dia, exclama
Tobias.
Por
toda parte, via-se bandeiras, bandeirolas e estandartes do reino plantadas pela
estrada. É muito vaidoso, o Príncipe. Chapeuzinho cantava e colhia amoras
enquanto caminhavam. Várias borboletas cruzavam o caminho dos viajantes. Havia
coelhos na grama e corujas nos tocos das árvores. Chapeuzinho se encantava com
as lindas e perfumadas flores da floresta e as borboletas amarelas. Hipnotizada
pelo vôo delas, passou a seguí-las, embrenhando-se na mata. Tobias não a
repreendeu, apenas a acompanhou atentamente. Ela parou em uma clareira,
sentou-se em um tronco para recolher flores. Quando colhia uma, parecia-lhe que
a outra mais adiante era ainda mais bonita. Os últimos raios de sol do poente
dançavam por entre as árvores. Chapeuzinho sorria embevecida com toda aquela
beleza. Como se em resposta ao seu sorriso, coelhinhos, esquilos, rouxinóis,
corças, corujas e uma porção de outros bichinhos foram chegando perto dela.
Alguns pularam em seu colo ou aconchegaram-se em seus braços. Uma onda de
alegria inundou o pequeno bosque, pois os passarinhos resolveram cantar as mais
lindas melodias de seu repertório para Chapeuzinho. E Chapeuzinho também cantou
para eles, retribuindo o carinho recebido.
Tobias
a observava maravilhado, ela dançava e rolava pela relva com os animaizinhos, a
saia curta se estreitava ainda mais, deixando transparecer coxas firmes e
grossas. Embora não seja mais que uma menina, já tinha um corpo bem definido.
Seios já despontando, nádegas já bem voluptuosas. Aquela visão fazia o coração
de Tobias bater descompassado. Definitivamente não podia recriminar o lobo por
querer devorá-la.
Tobias
se aproxima, imponente e com uma expressão séria e sólida. Os animaizinhos
recuam, temerosos. Sentada sobre a grama, Chapeuzinho fita seu olhar
penetrante, parece haver um brilho estranho nos olhos daquele homem, uma chama
que tenta envolvê-la. Tobias segura seu delicado pulso com firmeza e sopra em
seu ouvido:
Posso
dançar com vocês? – e sorri meio abobalhado. Chapeuzinho sorri. Os esquilos
sorriem. Até as árvores parecem esboçar um sorriso. Todos se dão mãos e patas e
num círculo dançam alegremente a cirandinha. Há muito Tobias não relaxava e se
divertia assim. Tudo ali era riso e música. Aquela primavera parecia eterna.
Logo
a lua enorme e brilhante se mostrou inteira, completa, sem pudor. E os
viajantes decidem continuar sua jornada. Seguem pela florida estrada até um
singelo vilarejo. Chapéu os guia até uma casa embaixo de três grandes
figueiras, próximo das nogueiras. Toda cercada por um belo jardim muito bem
cuidado. Corações entalhados enfeitam as portas e janelas.
É
aqui que eu moro – Chapeuzinho saltita para dentro e é recebida por um grande
gato negro - Este é o meu gato, José. Ei, José, sentiu minha falta?
Uma
voz parte dos fundos – Creo? É você?
Mamãe,
temos visita, é um velho conhecido seu.
A
mãe aparece e olha incrédula para o recém-chegado.
Tobias.
Como
vai, Joaquina?
Loira,
os longos cabelos lisos presos, a pele branca, bochechas rosadas como as de Creonícia,
usa um vestido longo sobre seu corpo esguio. Ela continua como Tobias guardou
na memória, ativando muitas recordações.
Pensei
que nunca mais o veria.
Sim,
mas eu voltei.
O
que andou fazendo por todo esse tempo?
O
de sempre, caçando.
Mãe,
já vou dormir, estou cansada.
Como
é que se diz, Creo?
Boa
noite, Tobias.
Tobias
a observa até desaparecer no corredor que leva ao quarto.
Quanto
a você, tem uma bela novidade.
Sim.
É uma boa garota, embora um tanto rebelde e malcriada. Mas tirando os dois
abortos que fez o ano passado, até que não vem me dando muito trabalho.
E
quem é o pai dela?
Quem
sabe? Ela foi gerada naquele histórico dia, a quatorze anos atrás.
Você
quer dizer... na Grande Suruba?
Vejo
que você se lembra. A propósito, reparou que ela tem os seus olhos?
Ei,
não vem não. Tem outros mil caras além de mim que podem ser o pai. Fora o
orangotango, a raposa, o Patinho Feio, o Gato de Botas, o Pequeno Polegar, os
Três Irmãos Ursos, o Peter Pan, o Soldadinho de Chumbo, o Barba Azul, o
Grão-Duque do Rei, o Feliz, o Atchim, o Zangado, o Dengoso, o Soneca, o duende,
o Bongo, o Príncipe Sapo, o Peixinho Filomeno, o...
Não
se preocupe. Nem quero saber quem é, todo esse tempo eu a criei sozinha e
vivemos muito bem assim. Mas o que o traz de volta depois de tanto tempo?
Tenho
negócios a tratar na região.
Sempre
misterioso, hein? Bom, se quiser pode dormir aqui esta noite.
Não,
eu tenho que ir... mas dá tempo de uma rapidinha.
Acho
que não. A não ser que você tenha aprendido a transar.
Puxa,
era tão ruim assim?
Ruim?
Está brincando? Tive de implorar ao Feiticeiro para reconstruir meu clitóris
depois da última vez. E além do mais, homens não me interessam mais.
Então
pretende continuar solteira?
E
quem disse que estou solteira? Estou amando. Lembra-se da Tamância?
Tamância...
não é uma das meia-irmãs da Cinderela?
Essa
mesma.
Quer
dizer então que você e ela... puxa, mas ela não estava exilada?
Sim,
mas voltou ao reino em
segredo. Se o Príncipe descobrir irá mandar decapitá-la, só
podemos nos ver escondidas.
Também...
depois do que ela fez com a coitada da Cinderela.
Coitada
o escambau! Cinderela era uma vadia pilantra oportunista! Teve o que merecia!
Bom,
já que você não vai dar pra mim, vou seguir meu caminho.
Está
bem. Sorte.
Despedem-se.
Tobias continua pelo radiante caminho iluminado pelo luar. Bandeiras,
bandeirolas e estandartes espalhados por toda parte. Logo mais, adentra a
floresta por uma estreita trilha e caminha silenciosamente até um pequeno
bosque. Logo à frente, uma cabana. Parece abandonada. Tobias saca o rifle e se
agacha entre os arbustos, permanecendo oculto para quem chega pela trilha
principal e pronto para atirar, a mira apontada para a entrada da cabana.
Por
longos minutos, continua parado ali, encoberto pelo manto negro da noite.
Um
chacal começa a uivar.
O
céu já estava bem escuro mas havia uma estrela brilhando. Era a Estrela do Fim
da Tarde. Dela imanava uma luz estranha, muito brilhante, que parecia se
expandir na direção de Tobias. É como se uma ponte luminosa estivesse sendo
construída entre o céu e a terra. Um clarão flutuava sobre ela, chegando cada
vez mais perto. Ao se aproximar de Tobias, aquele ponto foi tomando forma.
Materializou-se uma minúscula criatura, com asas que ricocheteavam rápido
demais para se acompanhar, e olhos saltados e penetrantes. Era um sabiá, que
parou no ar bem ao lado de Tobias.
Eu
sei o que você pretende, Tobias.
Se
não é o Sabiá-Guru, o animal mais sábio de toda a Terra Encantada, a
consciência de todos os seres vivos. O que quer aqui?
Você
tem noção do que pretende fazer? Isso é errado, Tobias. Você não pode...
Ah,
antes que eu me esqueça, parabéns.
...?
Pelo
seu sucesso. Soube que já vendeu mais de um milhão de exemplares dos seus
livros de auto-ajuda.
Não
mude de assunto, Tobias, o que eu quero é lhe alertar sobre a gravidade do que
está pensando em faz...
Ora,
seu pequeno hipócrita. Não venha com seu moralismo barato pra cima de mim não.
Vive dando lições, mas não me engana. Eu sei que foi você quem delatou
Rapunzel. Ela era inocente, e você sabe disso.
Não
sei do que está falando.
E
até hoje não encontraram nem uma barra de ouro que ela supostamente roubou.
Será que todo aquele tesouro foi literalmente pelos ares?
O
que está querendo insinuar?
Curiosamente,
após esses acontecimentos, seu filho se mudou para uma bela mansão à beira mar
na Terra do Nunca...
Miserável!
Está querendo me acusar? Por acaso tem alguma prova? Minha vida sempre foi
marcada pela mais absoluta integridade. Pergunte a qualquer um. Eu...
O
que você faz é manipular os tolos para seu próprio benefício, mas nem todos
caem nas suas trapaças. Agora suma daqui antes que eu perca a paciência e rache
você bem no meio.
O
Sabiá-Guru se afasta - Você é mesmo um caso perdido, Tobias. Espero que esteja
preparado para as consequências do seu ato. – Assim como chegou, ele desaparece
em um clarão.
Tobias
retorna para sua posição. Arma em riste. Mira firme. Em prontidão, aguarda.
A
noite avança lentamente, agora em total silêncio.
Logo
ele chegará com sua amante. Ele acha que ninguém sabe dos seus romances
escondidos neste bosque, mas os chacais são mais fofoqueiros do que imagina.
Sempre traz suas amantes para esta cabana. Branca de Neve, Bela Adormecida,
Cachinhos de Ouro, Mamãe Cabra, Alice, e até a Bruxa Má já passaram por aqui,
entre tantas outras. Sempre uma diferente. Mas a desta noite será a última. Por
que desta vez Tobias está aqui.
Um
leve som de galhos se partindo quebra o silêncio local. Tobias pode ouvir
passos sobre a relva. Está chegando o momento. Segura forte o rifle. Chega de
caçar veados e lobos pela floresta. Hoje a presa será maior, como testemunharão
as lindas flores. Nesta noite, chegará ao fim a ditadura do Príncipe Encantado.
E terá início a história de Tobias, o Caçador.
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