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terça-feira, 13 de outubro de 2020

PEQUENOS FRAGMENTOS DE ALGO

 

PEQUENOS FRAGMENTOS DE ALGO:

 

 

 

Guerra

 

Os homens se matam. As baratas comemoram.

 

 

 

 

Viver

 

Comer, trepar, dormir. O resto é enganação.

 

 

 

 

Feliz Ano Velho

 

Fim de ano. Na TV, reprises. Na vida real, idem.

 

 

 

 

 

Faxina

 

Rasga a foto tirada daquele passeio inesquecível

Agora a faxina do quarto está finalmente completa.

 

 

 

 

Nobre ou Qualquer Hora é Hora ou A Vida Não Tem Eufemismos

 

         Ele está demorando demais lá dentro, comentavam.

         Pobre coitado. Morreu enquanto defecava.

 

 

 

 

O eu interior

 

         Do apêndice me livrei. O rim vendi. O coração entreguei para meu amor. Do cérebro nada fiz. Ele não é meu. Desde pequeno pertence às grandes corporações.

 

 

 

 

Apóstrofe

 

         - Você é um fracassado. Por que ainda escreve?

         - Tens razão, sou um fracassado, e é exatamente por isso que escrevo. Para me certificar de que, apesar de tudo, ainda estou vivo.

 

 

 

 

Prêmio

 

         Um homem mata e ganha uma medalha. Um homem mata e rouba uma medalha. Um homem vende uma medalha e morre. Um homem vive criando medalhas. Um homem vive matando. A morte ganha uma medalha. Uma medalha mata um homem e vive.                                             

 

 

 

 

Doença

 

         A vida naquele planeta se torna insustentável. O homem-vírus encontra outro. O homem-vírus se hospeda e se multiplica. O planeta não estava vacinado, adoece [e prostra-se inerte]. O homem-vírus parte.

 

 

 

 

Baque

 

         Oh, meu Deus, o sangue que escorre de sua jugular..

Ver seu sangue escorrer me faz vomitar. Sinto vertigem, sento no chão. Não posso ver sangue, passo mal, desde criança. É por isso que sempre preferi estrangular minhas vítimas.

 

 

 

 

Apóstata

 

Antes do sol nascer, começa o processo de limpeza. O tronco e as roupas enterra no lixão abandonado. Os braços e as pernas joga no córrego. “Eu te amava tanto”, diz olhando para a cabeça, “por que você fez aquilo?” Coloca no congelador do freezer. Depois vai trabalhar.

 

 

 

 

Reflexos

 

         Disse que eu era bonita, me chamou pra tirar umas fotos. De repente, estava em cima de mim. O delegado me ouvia de olhos ávidos. O psicólogo me pediu para fechar os olhos e lembrar minha infância. Então pousou a mão sobre minha coxa. Hoje o grande espelho do quarto não reflete mais minha imagem.

 

 

 

 

O princípio do meio

 

         O triste fim se inicia no meio. No meio da vida, percebeu que não tinha a eternidade sob seu controle. Ao meio o coração se dividiu quando a paixão de sua vida decidiu partir. Meias palavras lhe foram ditas pelo chefe antes da dispensa. Bem no meio sua espinha se parte ao som de uma freada brusca que veio tarde demais. No meio da rua, mais um corpo em contraste com o meio.

 

 

 

 

Brasiane

 

         Todo mundo come carne. Brasiane é vegetariana. Todo mundo tem celular. Brasiane não tem. Todo mundo acredita em Deus. Brasiane é ateia. Todas as mulheres são vaidosas. Brasiane não é. Todo mundo gosta de cinema, sexo e pizza. Brasiane não gosta. Mas todo dia Brasiane sorri orgulhosa. Porque ela é Brasiane. Todo mundo não é.

 

 

 

 

Vida e Obra De

 

         William Shakespeare queria ser escritor. Mas o nome não permitia. Perguntou ao seu João, seu pai, por que o havia crucificado. Tá maluco, meu filho? Ler é fundamental, mas ser escritor? No mundo de hoje não dá pra sobreviver assim. Depois que for um advogado, um dentista, um engenheiro, aí sim você pensa nesse negócio de escritor. Tá achando que nasceu em berço de ouro?

 

 

 

 

Basicamente Amor

 

         Durante meses tentou conquistá-la, mas sempre rejeitado. Um dia ela te deu um beijo no rosto. Gostava de você, mas só como amigo. Outro dia não resistiu. Uma pancada certeira e fatal na cabeça. Antes do corpo esfriar, rasga sua roupa e faz tudo. Uma gozada de alívio. Sangue e porra no chão. Depois se pergunta o que fazer agora. Acabou com a vida dela, acabou com sua vida. Uma história de amor básica.

 

 

 

 

Monumento

 

         Foi tão bonito aquele dia. Foi até sua casa e deixou assistí-la defecar. A face levemente contraída por um leve esforço, o ruído da batida da bosta na água, tudo tão maravilhoso. Não, não dê descarga, você disse. Correu até o vaso e ficou a contemplar aquele monumento, perfeitamente esculpido, obra magnífica daquele ânus. É a merda mais linda que eu já vi em toda a minha vida, você disse. Ela corou e sorriu. De recordação pegou um pedaço e guardou num potinho. Agora um pouco dela andará sempre com você. Nada de fotos se pode ter uma recordação muito mais consistente. O resto ficará lá, flutuando solene para todo o sempre. Aquela privada nunca mais conhecerá descarga.

 

 

 

Overdose

 

         Demência? Não, não, é uma coisa assim tipo... tipo... não, não, estava na mente há um segundo, eu ia escrever, mas distraí com um helicóptero que passou (não, não, que palavra feia, helicóptero, por que não foi uma asa delta, por que eu não moro no pão de açúcar, não, não, não vou fazer propaganda daquela merda, podia ser outra praia, cabo frio, porto seguro, tudo uma merda, onde vivo também é uma merda (fecha os parênteses, porra, não abre outro não, fecha e liquida o assunto)). Tudo bem... ... ... não, não, a inspiração se foi, não sai nada, preciso atiçar mente, preciso de drogas. Drogas!!!! Celular? Não, uma menos viciante. Cogumelo? Heroína? Boa! Ei, o cara lá, o cara que vende na praça! Ei, ô da droga, chega aí, chega aí, ô da droga!! Rápido, rápido!!! Corre, porra!!!! Ele olha pra minha roupa antes de falar o preço, meus sapatos novos, terno armani alugado, óculos ray-ban roubados. Vai querer quanto, gente fina? Só o suficiente pra uma overdose!

 

 

 

Fantasias eróticas de um masoquista

 

         Estou morto. O sol se encarrega de assar meus restos, mas paciência não é virtude dos abutres. Cru é ainda melhor. Eles rondam, perscrutam, sorriem e se aproximam. Sinto seus bicos rasgarem minhas vestes. Nebulosos olhares de desejo. Ímpeto, volúpia, orgia. Várias das aves carniceiras salivam de ânsia em meu rosto. Corpo suado e molhado, roupas em pedaços. Em minutos, apenas alguns poucos exemplares de trapos me recobrem. Um bica meu olho, outro puxa a orelha. Na boca, um beijo guloso que leva gengiva e língua. Pele e músculos dilacerados, ossos chupados, o sangue a terra sorve. Banquete voraz, gozo supremo. Dois deles brigam para ver quem fica com os testículos. O vencedor abocarra toda a bolsa escrotal de uma vez, mastigando devagar, o pênis se parte em estalos túrgidos. Insaciáveis, não deixam sobrar nada além dos ossos. O festim só acaba quando sou um esqueleto, e eles partem, aliviados, cheios, inebriados pelo orgásmico ritual de conquista.

Estou vivo. Deitado na cama. Por que acordar de um belo sonho é tão cruel?

 

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