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domingo, 14 de março de 2021

Hora da ceia

 Hora da ceia


Muitas baratas por aqui. Gosto delas. São como eu. Criaturas da noite. Criaturas podres, que vivem em qualquer lugar, quanto mais imundo melhor. Deixo uma delas subir em minha mão. Começa a mordiscar meu dedo. É curioso como quase não sinto sugar meu sangue. Ela caminha até uma pequena ferida no meu dedo, um arranhão quando resvalei de mau jeito numa porta enferrujada. Sensação gostosa das mordiscadelas. É mais uma coceira que uma dor. Fico o mais imóvel possível por longos e saborosos segundos. Por quanto tempo ela irá se deleitar?

Num movimento rápido a pego com a outra mão. Seguro de forma delicada, para não esmagar a coitada. Ela movimenta as perninhas numa tentativa mecânica de escapar. É um bicho tão fofo e engraçadinho. Bonitinho e gostoso. Muito gostoso. Bem, amiguinha, você teve seu banquete. Agora é minha vez. Sutilmente a encosto em meus lábios. Primeiro, passo a língua sobre sua tenra cabecinha e sua carapaça, para sentir seu doce sabor. Delícia. Com a língua a empurro para dentro. Deixo-a se debater um pouco, chupo gostoso, como se fosse uma bala, sinto suas anteninhas roçarem em meu palato. Até que finalmente cravo vagarosamente meus dentes sobre ela, sinto seu doce e gosmento sangue escorrer por minha boca e minha garganta. Mastigo lentamente, mas a degustação acaba rápido demais, o inseto se esbaldou mais tempo comigo. Fica o gosto de quero mais. Procuro outros espécimes pelo chão, mas pela janela da cabine vejo o Josevâncio se aproximando. O Josevâncio é um dos moradores do prédio em que trabalho como porteiro noturno. Ele trabalha em um restaurante, sempre chega tarde. Sempre quando chega me pergunta qual a bizarrice do dia. É que mora muita gente excêntrica nesse prédio e frequentemente acontecem alguns tumultos, ou fatos inusitados. Como na semana passada, em que o Invertildo, do 403, correu pelado em volta do quarteirão pra pagar uma promessa. "Boa noite, Mazóglio. A turma aí aprontou hoje?" Na pequena TV da minha guarita, créditos passando, algum filme acabando. "Não, não", respondo, "tá bem tranquilo, tudo normal".


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