Acho
que não há mais nada a ser dito, mas continuo.
Capítulo
1030
Minha
vida é assim. Pela metade. E com erro de cálculo.
Cap.
2062
Uma
vez fui num sarau. Vários poetas declamaram. Todos falavam muito bem. Eram
expressivos. Receberam muitos aplausos. Tive muita inveja aquele dia.
Cap.
2063
Adoro
cozinhar. Hoje fiz um risotto à milanesa sensacional. Vou passar a receita pra
você.
Ingredientes:
400
gramas de arroz
80
gramas de manteiga
1
litro de caldo de carne
1/2
cebola média
1
sachê de açafrão
1/2 taça de vinho branco seco
60
gramas de parmesão
sal
a gosto
Inicialmente,
pique a cebola e coloque para dourar em fogo brando com metade da manteiga.
Acrescente o arroz e refogue por 2 minutos, mexendo sempre. Banhe com o vinho e
deixe evaporar em fogo alto (mais ou menos 2 minutos). Com uma concha, vá
acrescentando aos poucos o caldo de carne temperado com sal, que deve estar
sempre quente, quase em ponto de fervura. Deixe cozinhar por 12 minutos mexendo
de vez em quando e, à medida que o arroz for absorvendo o caldo, acrescente
mais. Misture o açafrão em um pouco de caldo e derrame no risotto, misturando
bem para tingí-lo uniformemente de amarelo. Acrescente rapidamente o restante
da manteiga e o parmesão para que escorra por todo o arroz. Misture mais uma
vez com força e sirva imediatamente. O segredo do risotto está no arroz. Tem de
ser um arroz de qualidade, isso é fundamental. Deve liberar amido suficiente,
durante o cozimento, para juntar os grãos sem grudá-los. Eu prefiro o italiano.
Seu tempo de cozimento deve ser de 16 a 18 minutos. Importante: os grãos não
devem ser lavados, para que mantenham maior quantidade de amido e, portanto,
seu poder de absorção. O produto utilizado e as adições constantes de caldo e
mexidas esporádicas resultam em um saboroso prato de consistência cremosa.
Depois da janta eu assistia TV quando o telefone tocou. Era minha filhotinha.
“Ei, papai”. Coisinha mais linda. Aguardo ansioso o sábado, pra passar todo o
dia com ela. A cada dia mais linda e inteligente. Vejo um grande futuro pra
essa menina. Eu darei tudo que ela precisar. Tudo.
Cap.
2064
Não
posso reclamar da sorte. Tenho muita sorte. Eu acho.
Cap.
2065
Ela
diz que sou um grande amante. A mãe da minha filha também comenta isso. Até
hoje. Vive me dando cantadas sutis. Não acredita quando digo que estou com
outra.
Cap.
2066
Tenho
minhas qualidades.
Cap.
2067
Foi
um dia bem curioso. Primeiro, fomos visitar os pais dela. Odeio os pais dela,
mas ela disse que era um almoço importante, alguém tinha alguma novidade pra
contar. No evento estavam também o irmão dela com a namorada, e as duas irmãs
com os respectivos maridos e respectivos bebês. Uma família comum e monótona.
Trocamos blábláblás diversos enquanto degustamos uma boa macarronada, até que o
pai dela enfim anuncia o casamento. Era só o que me faltava. Ela vibra com a
notícia, solta um sorriso radiante, abraça muito o irmão. Muito feliz pelos
dois, estão fazendo a coisa certa. Pronto, agora ela vai querer casar também.
Não vai aceitar ser a única solteira da família. Só o que me falta. Passamos o
resto da tarde reunidos. Conversamos futilidades. Agora só eu ali não pertenço
oficialmente à família. Sou um sujeito paciente e educado, um bom namorado
afinal, suportei aquilo até o início da noite. “Já é tarde, melhor eu pegar meu
ônibus pra casa”. Ela me acompanha até o ponto, são alguns bons quarteirões
dali. Sugere uma caminhada pela praia. Não recuso, sou um namorado educado.
Passeamos pela areia em silêncio. Ela, tão faladeira, nunca fica em silêncio.
Sei o que está pensando. Logo vai jogar indiretas sobre o casamento da irmã,
como aquilo tudo é bonito e tal. No entanto, quando finalmente fala, as
palavras são surpreendentes: “Vi seu
caderno.” “Que caderno?” “Um de capa rosa. Estava junto com os cadernos da
escola que você me emprestou. Você deve ter misturado sem querer.” Não digo nada,
apenas olho em linha reta enquanto caminhamos. “Não sabia que você escrevia”.
Dou de ombros. “Todo mundo escreve hoje em dia. Qualquer inútil tem um blog.
Porque eu também não deveria escrever?” Ela dá uma boa risada. “O que é? Um
romance? Aquele caderno começa no capítulo 1019 e vai até o 1250”. “Não é um
romance. É um diário”. Alguns segundos de pausa. “Um diário... então aquilo
tudo é real...” O humor dela muda. Seriedade. “A maior parte sim, mas alguns
capítulos eu inventei”. Finalmente olho pra ela, virada pra areia, expressão
indecifrável . “Você escreveu tudo isso? Mais de 1000 capítulos?” “Nem todos.
Alguns eu deixei apenas na mente. Os outros estão espalhados em cadernos
diversos, e também na internet”. “Escreveu sobre mim?” “Claro. Não seria meu
diário se não falasse sobre você. O capítulo 1600 narra o dia em que nos
conhecemos”. Voltamos ao silêncio. Ondas ricocheteiam na orla. Adoro a praia
durante a noite. Essa quietude, apenas o som do mar. Uma repentina vontade de
mergulhar nessas águas enegrecidas pelo crepúsculo. Ficar lá, boiando, deixar a
maresia me levar. Ela não diz mais nada, está ainda mais séria e reflexiva. Ela
que nunca fica séria. Não tento mais ler seus pensamentos. “Melhor voltarmos
pra rua. Meu ônibus irá passar em 5 minutos.”
Cap.
2080
A
escrita iniciou juntamente com a esquizofrenia. Antes escrevia mais, madrugadas
inteiras. Acho que, inexoravelmente, a preguiça é parceira do tempo.
Inexoravelmente. Sempre quis usar essa palavra. Não sei se foi adequado.
Cap.
2081
Não
sou muito inteligente, mas pelo menos assumo isso. Esses esnobes da escola são
tão ignorantes quanto eu, a única diferença é que eles falam bem, eles sabem
enganar. Se são tão inteligentes e cultos, porque estão fazendo Supletivo? Eles
pensam que vão formar antes de mim, mas não vão. Logo completo o médio e vou
pra faculdade. E aí serei advogado. E aí vou ferrar com todos eles.
Cap.
2082
A
televisão está falando de novo sobre o cara que caiu do viaduto. O nome dele
era Carlos Aldrecht. Estudante de educação física. Muita gente foi no enterro.
Tinha muitos amigos. Uma filha de quatro meses. Tinha sonhos. Tinha um pai e
uma mãe que choram sem parar. Todos gostavam muito dele. Segundo o repórter,
uma testemunha viu o Carlos ser empurrado lá do alto. Mas não é possível.
Estava tão escuro aquele dia, como pode ter visto?
Cap.
2083
Depois
de dois litros, era tudo tão bonito.
Cap.
2084
Algumas
coisas não deveriam ser ditas. Ou escritas. Isso é um erro.
Cap.
2085
A
tia do 1003 às vezes senta na entrada do prédio com seu Yorkshire e fica ali,
sentada, vendo o movimento, o dia morrer. Velha inútil. Lembro com profundo
pesar de quando eu também era um inútil. Quanto tempo perdi. Talvez eu devesse acordar
a velha.
Cap.
2086
Quando
comecei a escrever passei a refletir sobre coisas que fiz. Se realmente deveria
ter feito. Também penso naquilo que talvez eu devesse ter feito e não fiz.
Cap.
2087
O
não feito é muito doloroso. Mas agora é diferente. Não deixo mais as coisas por
fazer.
Cap.
2088
Não
sou um bom escritor, admito. Nem tenho pretensão de ser.
Cap.
2089
Gosto
de assistir TV. É relaxante. Só não vejo novela. Minha mãe acompanhava todas.
Falava que um dia nós teríamos uma casa bonita como aquelas da novela. Minha
mãe está morta. Enterrada no cemitério mais bonito da cidade.
Cap.
2090
A última garota que estuprei foi bem frustrante. Ela não depilava. Fiquei puto e
acabei broxando. Fui embora, mas dei uma boa bronca nela. Que isso não se
repita mais.
Cap.
2091
Por
favor, aplaudam. Preciso melhorar minha auto-estima.
Cap.
3
Entendeu
agora? Não podemos apenas viver o presente. Nem ficar pensando apenas no
futuro. É necessário frequentemente reescrever o passado.
Cap.
2
Não
consigo. Apenas fecho os olhos.
Cap.
2092
Deus
não comete erros. Então aquilo era certo. Se aconteceu, é certo. Se fosse
errado, Deus não deixaria acontecer. Sou feliz afinal. Consciência tranqüila.
Cap.
2093
Eu
não acredito. Não acredito em felicidade. Por quê, Deus? Por que nunca sei o
que fazer?
Cap.
2094
Ela
disse que me ama. Como pode me amar? Será alguma maluca? Não posso amar uma
maluca. Mas devo. Uma nova esperança pra mim. Mais uma.
Cap.
Final
Boa
noite, ainda que seja dia.
Cap.
2095
Lembrei
de uma coisa importante. Não... não é tão importante assim. Deixa pra lá. Vou pra cozinha, preparar uma boa bacalhoada.
Nada como a boa e velha esquizofrenia! hahahahaha Ademais, como vc ja se declarou uma metalinguagem ambulante eu não vou nem dar trela pra esse papo de partes corrompidas e esse blá blá blá.... Eu hein?! Como pode uma metalinguagem inventar de querer ser uma metonímia?
ResponderExcluirMuito bom o trampo. Genial.
ResponderExcluirCara, ótimo texto.
ResponderExcluirmuito bom mesmo!! Viajei ! haha
ResponderExcluir