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SOU O QUE SEREI

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Capítulo 2061


Acho que não há mais nada a ser dito, mas continuo.

Capítulo 1030
Minha vida é assim. Pela metade. E com erro de cálculo.

Cap. 2062
Uma vez fui num sarau. Vários poetas declamaram. Todos falavam muito bem. Eram expressivos. Receberam muitos aplausos. Tive muita inveja aquele dia.

Cap. 2063
Adoro cozinhar. Hoje fiz um risotto à milanesa sensacional. Vou passar a receita pra você.
Ingredientes:
400 gramas de arroz
80 gramas de manteiga
1 litro de caldo de carne
1/2 cebola média
1 sachê de açafrão
1/2 taça de vinho branco seco
60 gramas de parmesão
sal a gosto
Inicialmente, pique a cebola e coloque para dourar em fogo brando com metade da manteiga. Acrescente o arroz e refogue por 2 minutos, mexendo sempre. Banhe com o vinho e deixe evaporar em fogo alto (mais ou menos 2 minutos). Com uma concha, vá acrescentando aos poucos o caldo de carne temperado com sal, que deve estar sempre quente, quase em ponto de fervura. Deixe cozinhar por 12 minutos mexendo de vez em quando e, à medida que o arroz for absorvendo o caldo, acrescente mais. Misture o açafrão em um pouco de caldo e derrame no risotto, misturando bem para tingí-lo uniformemente de amarelo. Acrescente rapidamente o restante da manteiga e o parmesão para que escorra por todo o arroz. Misture mais uma vez com força e sirva imediatamente. O segredo do risotto está no arroz. Tem de ser um arroz de qualidade, isso é fundamental. Deve liberar amido suficiente, durante o cozimento, para juntar os grãos sem grudá-los. Eu prefiro o italiano. Seu tempo de cozimento deve ser de 16 a 18 minutos. Importante: os grãos não devem ser lavados, para que mantenham maior quantidade de amido e, portanto, seu poder de absorção. O produto utilizado e as adições constantes de caldo e mexidas esporádicas resultam em um saboroso prato de consistência cremosa. Depois da janta eu assistia TV quando o telefone tocou. Era minha filhotinha. “Ei, papai”. Coisinha mais linda. Aguardo ansioso o sábado, pra passar todo o dia com ela. A cada dia mais linda e inteligente. Vejo um grande futuro pra essa menina. Eu darei tudo que ela precisar. Tudo.

Cap. 2064
Não posso reclamar da sorte. Tenho muita sorte. Eu acho.

Cap. 2065
Ela diz que sou um grande amante. A mãe da minha filha também comenta isso. Até hoje. Vive me dando cantadas sutis. Não acredita quando digo que estou com outra.

Cap. 2066
Tenho minhas qualidades.

Cap. 2067
Foi um dia bem curioso. Primeiro, fomos visitar os pais dela. Odeio os pais dela, mas ela disse que era um almoço importante, alguém tinha alguma novidade pra contar. No evento estavam também o irmão dela com a namorada, e as duas irmãs com os respectivos maridos e respectivos bebês. Uma família comum e monótona. Trocamos blábláblás diversos enquanto degustamos uma boa macarronada, até que o pai dela enfim anuncia o casamento. Era só o que me faltava. Ela vibra com a notícia, solta um sorriso radiante, abraça muito o irmão. Muito feliz pelos dois, estão fazendo a coisa certa. Pronto, agora ela vai querer casar também. Não vai aceitar ser a única solteira da família. Só o que me falta. Passamos o resto da tarde reunidos. Conversamos futilidades. Agora só eu ali não pertenço oficialmente à família. Sou um sujeito paciente e educado, um bom namorado afinal, suportei aquilo até o início da noite. “Já é tarde, melhor eu pegar meu ônibus pra casa”. Ela me acompanha até o ponto, são alguns bons quarteirões dali. Sugere uma caminhada pela praia. Não recuso, sou um namorado educado. Passeamos pela areia em silêncio. Ela, tão faladeira, nunca fica em silêncio. Sei o que está pensando. Logo vai jogar indiretas sobre o casamento da irmã, como aquilo tudo é bonito e tal. No entanto, quando finalmente fala, as palavras são surpreendentes:  “Vi seu caderno.” “Que caderno?” “Um de capa rosa. Estava junto com os cadernos da escola que você me emprestou. Você deve ter misturado sem querer.” Não digo nada, apenas olho em linha reta enquanto caminhamos. “Não sabia que você escrevia”. Dou de ombros. “Todo mundo escreve hoje em dia. Qualquer inútil tem um blog. Porque eu também não deveria escrever?” Ela dá uma boa risada. “O que é? Um romance? Aquele caderno começa no capítulo 1019 e vai até o 1250”. “Não é um romance. É um diário”. Alguns segundos de pausa. “Um diário... então aquilo tudo é real...” O humor dela muda. Seriedade. “A maior parte sim, mas alguns capítulos eu inventei”. Finalmente olho pra ela, virada pra areia, expressão indecifrável . “Você escreveu tudo isso? Mais de 1000 capítulos?” “Nem todos. Alguns eu deixei apenas na mente. Os outros estão espalhados em cadernos diversos, e também na internet”. “Escreveu sobre mim?” “Claro. Não seria meu diário se não falasse sobre você. O capítulo 1600 narra o dia em que nos conhecemos”. Voltamos ao silêncio. Ondas ricocheteiam na orla. Adoro a praia durante a noite. Essa quietude, apenas o som do mar. Uma repentina vontade de mergulhar nessas águas enegrecidas pelo crepúsculo. Ficar lá, boiando, deixar a maresia me levar. Ela não diz mais nada, está ainda mais séria e reflexiva. Ela que nunca fica séria. Não tento mais ler seus pensamentos. “Melhor voltarmos pra rua. Meu ônibus irá passar em 5 minutos.”

Cap. 2080
A escrita iniciou juntamente com a esquizofrenia. Antes escrevia mais, madrugadas inteiras. Acho que, inexoravelmente, a preguiça é parceira do tempo. Inexoravelmente. Sempre quis usar essa palavra. Não sei se foi adequado.

Cap. 2081
Não sou muito inteligente, mas pelo menos assumo isso. Esses esnobes da escola são tão ignorantes quanto eu, a única diferença é que eles falam bem, eles sabem enganar. Se são tão inteligentes e cultos, porque estão fazendo Supletivo? Eles pensam que vão formar antes de mim, mas não vão. Logo completo o médio e vou pra faculdade. E aí serei advogado. E aí vou ferrar com todos eles.

Cap. 2082
A televisão está falando de novo sobre o cara que caiu do viaduto. O nome dele era Carlos Aldrecht. Estudante de educação física. Muita gente foi no enterro. Tinha muitos amigos. Uma filha de quatro meses. Tinha sonhos. Tinha um pai e uma mãe que choram sem parar. Todos gostavam muito dele. Segundo o repórter, uma testemunha viu o Carlos ser empurrado lá do alto. Mas não é possível. Estava tão escuro aquele dia, como pode ter visto?

Cap. 2083
Depois de dois litros, era tudo tão bonito.

Cap. 2084
Algumas coisas não deveriam ser ditas. Ou escritas. Isso é um erro.

Cap. 2085
A tia do 1003 às vezes senta na entrada do prédio com seu Yorkshire e fica ali, sentada, vendo o movimento, o dia morrer. Velha inútil. Lembro com profundo pesar de quando eu também era um inútil. Quanto tempo perdi. Talvez eu devesse acordar a velha.

Cap. 2086
Quando comecei a escrever passei a refletir sobre coisas que fiz. Se realmente deveria ter feito. Também penso naquilo que talvez eu devesse ter feito e não fiz.

Cap. 2087
O não feito é muito doloroso. Mas agora é diferente. Não deixo mais as coisas por fazer.

Cap. 2088
Não sou um bom escritor, admito. Nem tenho pretensão de ser.

Cap. 2089
Gosto de assistir TV. É relaxante. Só não vejo novela. Minha mãe acompanhava todas. Falava que um dia nós teríamos uma casa bonita como aquelas da novela. Minha mãe está morta. Enterrada no cemitério mais bonito da cidade.

Cap. 2090
A última garota que estuprei foi bem frustrante. Ela não depilava. Fiquei puto e acabei broxando. Fui embora, mas dei uma boa bronca nela. Que isso não se repita mais.

Cap. 2091
Por favor, aplaudam. Preciso melhorar minha auto-estima.

Cap. 3
Entendeu agora? Não podemos apenas viver o presente. Nem ficar pensando apenas no futuro. É necessário frequentemente reescrever o passado.

Cap. 2
Não consigo. Apenas fecho os olhos.

Cap. 2092
Deus não comete erros. Então aquilo era certo. Se aconteceu, é certo. Se fosse errado, Deus não deixaria acontecer. Sou feliz afinal. Consciência tranqüila.

Cap. 2093
Eu não acredito. Não acredito em felicidade. Por quê, Deus? Por que nunca sei o que fazer?

Cap. 2094
Ela disse que me ama. Como pode me amar? Será alguma maluca? Não posso amar uma maluca. Mas devo. Uma nova esperança pra mim. Mais uma.

Cap. Final
Boa noite, ainda que seja dia.

Cap. 2095
Lembrei de uma coisa importante. Não... não é tão importante assim. Deixa pra lá. Vou pra cozinha, preparar uma boa bacalhoada.

4 comentários:

  1. Nada como a boa e velha esquizofrenia! hahahahaha Ademais, como vc ja se declarou uma metalinguagem ambulante eu não vou nem dar trela pra esse papo de partes corrompidas e esse blá blá blá.... Eu hein?! Como pode uma metalinguagem inventar de querer ser uma metonímia?

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  2. Muito bom o trampo. Genial.

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